Capítulo 3 - O Morro dos Mil Becos

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Emílio morava no Morro dos Mil Becos

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Emílio morava no Morro dos Mil Becos. Certa vez, explicou a Will que tinha esse nome porque os casebres foram construídos desordenadamente ao longo de mais de cem anos pelos negros oriundos das fazendas de café. Eram antigos escravos libertos pela Lei Áurea, de 1888, no final do império lusitano, no Brasil — último país do Ocidente a devolver a liberdade aos negros. A família paterna de Will era africana. Ele ficou revoltado ao saber que esses homens e mulheres ditos "livres" eram proibidos de residir nos centros urbanos e só podiam edificar suas casas fora do perímetro da cidade. Demorou, mas entendeu por que seu povo fora morar nos morros, num amontoado de casas cujos becos formaram verdadeiros labirintos, como dominós empilhados. Emílio queixava-se por quase não haver espaço para se divertir. As crianças estavam acostumadas ao cerco das paredes. De tanto brincarem, conheciam bem os atalhos, as brechas e os esconderijos onde adoravam se enfiar para não serem importunadas. Chamavam de "passagens secretas" e contavam para quem quisesse ouvir que testemunharam idas e vindas de alguns deles para outros mundos. Pessoalmente, Emílio achava as "histórias" uma bobagem.

Os labirintos, de tão emaranhados, dificultavam o tráfego de visitantes e se tornavam uma atração à parte. Era comum vê-los perdidos em ruelas e becos abordando moradores para encontrar a saída. No verão, turistas de diversas partes do mundo pagavam caro para serem conduzidos ao topo. Eles adoravam subir o morro porque, na Cidade Luz, o Morro dos Mil Becos tornou-se o lugar por excelência de uma vista privilegiada da cidade, do pôr do sol e dos verdes mares com seus portos e transatlânticos. Emílio confessou a Will que já havia conduzido sete grupos em um só dia e ganhado gorjetas gordas que lhe permitiram pagar o aluguel e sustentar a casa por um mês. O cartão de visita era a conhecida hospitalidade dos moradores; a propaganda, o boca a boca.

Emílio dizia-se sortudo. Morava em um lugar apaziguado há alguns anos, não pela força da polícia, mas pela dedicação e sabedoria das famílias centenárias que aprenderam a resistir às intempéries dos invernos rigorosos e às invasões de criminosos. Isso sem usar uma só arma de fogo. O mesmo não aconteceu com os dois morros próximos, batizados de Anões do Cais. Havia também áreas que foram planificadas pelos moradores para construção de campinhos de futebol e pracinhas improvisadas, frequentadas por Emílio e Will nas horas de folga. No entanto, quem olhava para o pé do morro — como Will, que morava no prédio luxuoso ao lado — via claramente o descompasso entre natureza e civilização. As árvores deram lugar às casas e, no inverno, exigiam um alto preço pelo desmatamento de décadas. Todos os anos, os jornais anunciavam deslizamentos e mortes. Emílio contou que se refugiava junto às poucas árvores do topo. Mas não contou tudo. Will sabia que, nas fortes chuvas, o amigo do Liceu fora visto abraçando árvores e implorando à natureza para que não castigasse o morro — era um hábito herdado de sua mãe indígena. Ele só descobriu porque ouviu na escola insultos de alguns grandalhões que, no intervalo, espalharam a notícia e, na saída, caçoaram de Emílio, ameaçando agredi-lo.

Ao chegar a sua casa, Emílio pensava somente numa coisa: abrir o livro de Aristóteles. Entrou, ligou o interruptor, encostou a bicicleta, jogou as coisas no desbotado sofá da sala e trancou a porta, apoiando nela uma pesada viga de concreto. Em seguida, colocou o livro sobre a única mesa da pequena casa de três cômodos e não tirou o olho dele enquanto pegava biscoitos e suco na velha geladeira. Receava que algo estranho acontecesse ou que o episódio da biblioteca se repetisse. Ele se sentou, contemplou o livro por um momento. O medo era tanto que mal conseguia estirar o braço para tocá-lo. Desejou que o livro se abrisse sozinho. Cansado de esperar, achou que devia cooperar com uma palavra especial, como nos filmes de magia. Ensaiou um "abre-te, livro!", estendeu as mãos e disse: "Levita, livro... Voa, livro...". Não deu em nada. Acabou se convencendo de que filosofia e magia são inconciliáveis.

Emílio e os Lumens: o Quinto Poder (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora