Capítulo XIV

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♦AVISO: PODEM HAVER ERROS DE DIGITAÇÃO.♦

Maisha

O sabor único do bolo de fubá em minha boca e o cheirinho de café passado me traziam uma sensação tão boa, que a vontade que me tomava era de fechar os olhos e aproveitar o máximo que eu podia.

Estava sentada na porta da cozinha tomando um café fresquinho e comendo um pedaço de bolo que minha mãe havia acabado de tirar do forno.

Já era finalzinho de tarde, e o Sol se punha no horizonte, deixando o céu com um tom alaranjado tão bonito, que me tocava a alma. A essa hora os escravos que trabalhavam na lavoura já estavam voltando para a senzala ou suas pequenas casinhas.

Todos os dias penso em como eu estaria se ao invés de ser mucama, e trabalhar na casa grande, tivesse que ir todos os dias para a lavoura. Não posso negar que me sinto mal todas as vezes em que penso a respeito disso.

Mesmo tendo pouquíssimo, ainda me resta a mínima sorte. Trabalho bastante sim, contudo nem há como comparar o tanto de serviço que meus irmãos tem.

Trabalham de Sol a Sol colhendo, plantando, arando, debulhando. No final do dia, não conseguem nem mesmo pensar. Eu via isso em seus olhos. Eles não pensavam, agiam no automático. Não havia forças para isso depois de um dia miserável de trabalho.

Queria tanto que o mundo fosse justo. Queria tanto que o mundo fosse bom. Queria acreditar nas pessoas. Mas como ver algo bom no ser humano quando noite e dia eu e meus irmãos somos escravizados, privados de tudo, e reféns de qualquer punição ou ameaça?

Já vi tanta coisa ruim por essas terras. Já vi coisa ruim fora dela também. Por todo lugar que ando há sangue derramado. Sangue dos meus irmãos; sangue do meu povo.

E se eu fosse branca? O que faria? Simplesmente viraria as costas, não dando ínfima importância ao sofrimento alheio?

Se colocar no lugar do outro quando você conhece sua situação é muito mais fácil do que se estivesse de fora.

Quando uma mãe perde um filho, apenas outra mãe que passou pelo mesmo sabe a dimensão desta dor.

Quando uma mulher fica viúva, outra viúva pode acalentá-la com sinceridade, pois ela também sabe como este sentimento funciona.

Quando um escravo vai para o tronco, e tem a pele dilacerada pelo chicote, as sinhás da casa podem até se sentir mal, mas nunca como um escravo que observa a cena. Nunca, pois por mais que possam vir a lamentar, sabem que jamais passarão por tal coisa. Já nós não. Vivemos na iminência de um castigo. Ver um semelhante no tronco é como um lembrete vivo e sangrento de quem somos, e a que estamos submetidos.

A questão é que, quando não se conhece o sofrimento do outro, ele pode parecer irreal. Para muita gente, não somos reais. Estamos aqui, e eles nos veem. Nos veem, mas não nos notam. Veem o que passamos, mas não conhecem. Veem nossa dor, e fazem dela algo ilegítimo.

Nem todos são ruins. Nem todos podem querer a escravidão. Mas ao se calarem, ao virarem suas costas para um pedido de socorro, e ao não nos notarem, eles compactuam com tudo. Compactuam, pois quando não se faz algo para mudar o que é ruim, você de forma inconsciente, é tão causador daquilo quanto o pivô da situação.

— No que tanto vosmicê pensa, menina? — tomei um susto ao notar a presença de José, antes totalmente ignorada por mim. Acabei derramando um pouco de café na barra de minha saia, lhe arrancando um sorriso amarelo e sem graça. — Desculpa, não quis lhe assustar.

Balancei a cabeça em negação, e me pus de pé. Foi impossível não observar a figura do homem a minha frente. As roupas de cor amarelada, feitas de um algodão grosseiro, estavam cheias de terra e carrapicho. Suas mãos e pés estavam sujos, e ele carregava uma expressão cansada. Devia ter acabado de sair da lavoura.

Adinkra: O Poder do AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora