Capítulo 20

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Começou a chover poucos minutos depois. Pandora batia os pés pela rua deserta, as passadas assumindo um ritmo calmo porém constante, sabendo que dessa vez ninguém a seguia. Se sentia alheia ao mundo ao seu redor, completamente imersa nos próprios pensamentos, e quase não conseguia sentir os pingos grossos molhando seu cabelo.

No turbilhão que era sua cabeça, não conseguia parar de pensar como tinha sido sua vida antes de toda aquela bagunça acontecer. Seu coração estava apertado, ferido pela forma como as coisas se encaminhavam, e ela não conseguia evitar imaginar uma vida em que tudo fosse diferente, o que servia para deixá-la ainda mais irritada.

Pandora não queria ficar se lamentando e apenas desejando outra vida. Ela fazia aquilo de novo e novo a um ano inteiro, e já estava farta. Aquele era o mundo que tinha, e ela teria que engoli-lo. Trabalhar com o que estivesse a sua disposição. No entanto, ela tentava, procurava e lutava para melhorar as coisas, mas suas mãos rudes nunca pareciam realmente encontrar o verdadeiro problema. Tudo que ela tinha conseguido tinha sido, literalmente, por meio de batalhas. E ela não tinha quase nada.

Por isso, cada passo que dava pra longe dos meninos e pra perto do pedido da menina bode só fazia sua vontade de gritar aumentar. Não podia ser assim tão fácil. Ela tinha passado meses revirando os quatro cantos do planeta pra, de uma hora pra outra, uma garota aparecer e dizer que tinha todas as respostas, ela só precisava ficar sozinha para obtê-las. Nada em sua vida tinha sido assim tão simples, e ela duvidava fortemente de que ia começar agora. Tinha alguma coisa errada naquela história.

Mas que escolha ela tinha, se não fazer o que que a outra queria? Procura-la para ouvir o que tinha a dizer? Era a única pista que lhe restara, e os riscos compensavam. A garota bode sabia de alguma coisa, disposta a compartilhar ou não, e isso era o melhor que Pandora tinha tido desde então. Ela arrancaria da garota a força, se necessário fosse. Iria até o inferno para obter suas respostas.

E de novo, a violência estava lá, uma alternativa concreta para os objetivos de Pandora. Tudo na base da violência; do tiro ou da faca. Gritar e cortar até conseguir o que queria. Porque ela tinha aprendido, da pior forma possível, quer pedir educadamente não lhe resultaria em nada.

E mais uma vez, ela simplesmente não conseguia se impedir de pensar como as coisas devem ter sido antes. Será que, alguma vez em sua vida, ela tinha conhecido a paz? Será que a gentileza já tinha participado do seu cotidiano?

Então ela as sentiu vindo, e Pandora ficou tão surpresa que cambaleou. Surgindo de um canto de sua mente, borbulhando como um leite que ferveu e agora vazava da chaleira, memórias frescas de uma vida que pra ela já tinha sumido a muito tempo. Ela fechou os olhos e deixou-as vir, assustada com o aparecimento repentino mas achando-as bem vindas, nem mesmo lutando contra elas. A rua ao seu redor desapareceu, e de repente ela era uma outra Pandora, em algum outro lugar do mundo.

Seu corpo estava quente, cercado por cobertores felpudos, que afastavam o frio cortante da neve caindo do lado de fora da janela. Ela era um criança, tão nova quanto suas primeiras lembranças, e conseguia ver seu cabelo escuro espalhado em leque sobre a cama.

Tinha alguém no quarto com ela. Ela conseguia sentir a presença se movimentando pelo recinto, o barulho suave de uma porta fechando em algum lugar à esquerda de sua cabeça. Seu corpo estava tão sonolento que Pandora não conseguia se forçar a olhar para o lado, e as imagens pareciam distorcidas, desfocadas pelos olhos semiabertos e melados de cansaço. Uma silhueta escura se abaixou sobre ela, mas sua versão pequena não sentiu medo ou se esquivou enquanto uma mão fina se estendia em sua direção. Para a surpresa da garota que assistia, o toque que a alcançou foi gentil, espanando uma mecha de cabelo que caia sobre o rosto.

PandoraOnde histórias criam vida. Descubra agora