O dia amanheceu estranho, quase como se eu fosse capaz de perceber que meu céu iria despencar. Eu estou abrindo a porta do apartamento e torço muito para que o Legião não tenha rasgado outra almofada do sofá, pois acabei dormindo no trabalho e ele parece que sabe quando é o momento certo de se aprontar.
Giro a chave, ouço o barulho da fechadura se destrancar e, então, vejo um envelope no chão. Ele está sujo com marcas de patas de felinos, o que me é um sinal de que, definitivamente, eles colocaram a casa de cabeça para baixo.
Estou com medo de descobrir quem é que me escreveu, mas acho que não tenho muita opção.
"26 de Janeiro de 2022. Cedro-Rosa.
Estrelinha,
Há exatos quatro meses, você me magoou mais do que pensei que poderia suportar. Cada palavra daquele dia perfurou meus ouvidos, mergulhou em meu cerne e se enraizou em meus pulmões, fazendo com que eu achasse que seria surreal respirar o ar de um mundo onde você não estava por perto, porque, embora doesse escutar seus desabafos brutos, foi ainda pior quando você disse: "Acabou, não é mesmo? Simplesmente acabou."
Então, hoje é seu aniversário e eu senti uma necessidade idiota de lhe escrever. Infelizmente, não sei absolutamente nada sobre geografia e, por isso, serei incapaz de fazer comparações poéticas como as suas. Entretanto, queria confessar que a entendo. Não posso dizer que a perdoo porque a mágoa vem costurando, pouco a pouco, algumas cicatrizes em mim, porém, acho que, finalmente, entendo que você também estava — e está — sofrendo.
Acontece que, depois daquilo, eu fiquei tão confusa... Uma parte de mim quer, mais do que tudo, acreditar naquela carta. Mas, quando menos espero, ouço os sussurros de minha mãe dizendo que aquela não é a letra de meu pai e que você forjou um absurdo. E as lembranças vêm à tona: Você confessando que a caligrafia é sua — fato que eu já tinha percebido —, porém, jurando em nome do Legião e da Urbana que ele quem ditou as palavras. Meus irmãos ameaçando de ligar para polícia e chamando-a de maluca. Um Lucas que surge da cozinha e a faz desmoronar. O silêncio do cômodo que me sufoca contra a parede. O choro engasgado que grita mais que qualquer uma de nós.
Às vezes, quando eu revivo todos aqueles segundos, tenho a vaga impressão que nada foi real. Que, na verdade, você e eu estávamos sentadas nas cadeiras vermelhas do cinema, assistindo à estreia de algum filme extremamente dramático, afinal, não seríamos "nós" se não fosse algo impactante. Que, de repente, as roseiras do jardim de minha mãe ficaram com ciúmes da nossa história de amor e decidiram criar um enredo hollywoodiano e trágico, mas que, para a minha alegria, o Universo o achou um roteiro entediante.
Só que as coisas aconteceram e nós duas saímos machucadas.
Eu não consigo me recordar do que lhe falei no momento, porém, tenho a certeza de que foi estúpido e cruel, assim como as suas palavras para mim. E eu passei noites em claro, encarando o teto do meu quarto e conversando com o relógio do meu celular. Perguntava a ele se era muito tarde para lhe mandar uma mensagem; perguntava quanto tempo durava o tempo da dor; perguntava se ele poderia me contar o futuro e, caso sim, se você estaria feliz sem mim. A criatura nunca me respondeu, obviamente porque se encontrava ocupado demais devorando as células do meu rosto e criando rugas de estresse nas nossas faces.
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Sentimentos Geográficos
Ficción GeneralOntem eu tentei caçar as estrelas que pairavam sobre nós, apenas para dá-las a você. E eu queria muito ter o dom de ser mais do que sou, porque sei que você merece todo o universo, e, infelizmente, limito-me a ser um mero satélite natural. Mas se é...