06 - Cravos

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(Há meses atrás)

As portas se irromperam para dentro da vasta sala. Frio foi soprado para dentro, perturbando a estabilidade da flama delicada das velas. Não havia serviçais ali aquele horário tardio. O vento forte na chuva contínua era sua sinfonia melodramática.

— Aylin.... Aylin... —- cambaleante, débil, ele se agarrava nas costas das cadeiras, buscava apoio nas largas mesas. Sua pegada desproporcionalmente forte quebrava a estrutura de madeira dos objetos — Aylin!

A voz desesperada com nada se assemelhava ao tom grave formal do barão. Estava sujo de barro, vinho e sangue, com a capa rasgada, a camiseta danificada. Estava fora de si, com a feição escondida por baixo do cabelo encharcado caído sobre o rosto, escapando apenas o olhar raivoso e confuso.

— AYLIN!!! — gritou de modo intimidador que ecoou pelas paredes grossas da fortificação, para que todo o castelo o ouvisse. O seu bramido exigiu sua força, e ele tombou, buscando a mesa a sua direita. Em resultado, quebrou a tábua e arrastou a prataria e a fruteira cheia para o chão junto dele.

A prata tilintando ao seu lado o assombrou.

— Dyron?? — a pálida bibliotecária estacou na entrada do salão principal, pasma com a figura do nobre como um indigente. Ela se deu conta de que algo anormal ocorrera além de uma mera bebedeira e correu até ele. Seus passos podiam ser ouvidos na sala enquanto ela atravessava todo o tapete avermelhado com detalhes dourados e negros — Dyron, o que...

— ...Aylin... — rastejava como um animal. Era humilhante seu estado.

— Meu barão, o que aconteceu? — Aylin abaixou-se a sua frente buscando suas mãos. Notara que elas tremiam nervosamente. As unhas sujas já estavam longas, esboçando o desenho de presas. As veias sobressaiam, pulsantes, desenhavam caminhos assombrosos na sua pele arranhada. Ela o fez parar e levantou seu queixo que tremia para ver seu rosto. Haviam cortes, auto infligidos talvez, as pupilas estavam extremamente retraídas e os caninos salientados — Achei que estavam em Karnácia, não esperávamos pelo seu retorno nestes dias — ela se deu conta que nada que dizia era relevante. A face dele trazia perigo, tal fitar uma fera face a face — Dyron, o que a aquela bruxa fez com você? — perguntou para si mesma, começando a entender.

Dyron abaixou o olhar, as mãos tremeram com mais força. Seu lado humano estava se colapsando. E sua voz foi mais fraca e triste.

— Kállina — seu lado racional parecia ter só a capacidade de dizer uma palavra — Kállina....

— Precisa se limpar. Precisa se acalmar — Aylin tentou trazer o rosto dele de volta para frente e não conseguiu.

— Irmã — o barão estremecia. Sua postura comumente considerada arrogante foi quebrada em uma palavra. Chamara a bibliotecária pela forma mais íntima, superando qualquer formalidade — Leve-me.

Aylin lacrimejou.

— Levá-lo para onde?

— Prenda-me — a voz ficou sóbria. Sua tremedeira amenizou. Por um instante parecia que Dyron se levantaria para voltar a falar como o lorde que era — Prenda-me na torre.

Nunca antes Dyron chegou a esse estado. A torre em específico era uma desolada, um cômodo sombrio de poucas janelas e de difícil acesso. Fora lá que Dyron um dia ordenara que fora construída a sua prisão, temendo um dia perder o controle sobre sua maldição. Sem ajuda de mais ninguém, Aylin o ajudou a caminhar.

A porta pesada de ferro foi destrancada por fora e ela iluminou o interior com sua tocha. Ao centro do espaço redondo, haviam correntes que desciam da cúpula, das paredes e subiam do chão. Correntes grossas presas em argolas reforçadas.

— A bruxa envenenou sua alma — a estudiosa afirmou, posicionando a tocha em um pedestal e alcançando uma corrente pesada — Posso ver isso.

— Sim, mas eu quis assim — Dyron sentiu a pesada algema de aço em seu tornozelo e depois no outro — Não suportei as palavras dela — confessou — Não suportei o que ela fez — Aylin imaginou que Dyron buscara respostas na bebida, afinal sua roupa exalava odor de vinha — Aylin, perdoe-me — em arrependimentos, ele divagou.

— Não há o que se desculpar — ergueu o punho dele e com dificuldade prendeu seu pulso. Ele tentava ajudar, mas era inútil, mal ficando em pé. O outro braço também foi esticado ao máximo e então igualmente algemado nas correntes do teto.

— Não tire-me daqui enquanto eu não voltar a ser homem, não importa o quanto eu implore ou ameace.

Não havia jaula naquela cela macabra, pois não seria eficiente. Dyron sabia que quando esse momento chegasse, em que a loucura o consumisse, tentaria a auto mutilação.

Aylin não tinha ideia de quais horrores viriam daquele que tanto admirou.

Ele pendeu a cabeça e o peso do corpo para frente, pendendo nas correntes, murmurando.

"Kállina.... Kállina..."

— Fique bem, meu irmão — Aylin pegou a tocha e levou consigo.

Com um ranger, a massiva porta foi fechada até o final. Som abafado de travas sendo ativadas foram ouvidas do outro lado. Passos se distanciando, chuva sobre a coifa da torre e eventuais raios distantes.

Carruagens foram preparadas as pressas e desceram a montanha em direção da floresta. Os ocupantes do castelo Greymun foram levados para moradas na vila, de onde desfrutariam de segurança.

Apenas Aylin manteve-se sozinha com ele naquela noite.

Ao outro extremo do castelo, na torre que abrigava a biblioteca, os urros e batidas monstruosas eram ouvidos. O lamento da fera, a ira incomparável, o chamado desesperado, o ódio por tudo e por si mesmo.

Conforme a lua de sangue crescia, a besta lutava na prisão contra a perturbação e o horror. Lutava contra si mesma e suas memórias.


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Karnácia: Condessa ProfanaOnde histórias criam vida. Descubra agora