(conto) Jardim de Espinheiro

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[esse conto se passa em um futuro, então nem tentem entender a cronologia dele ainda]


— Mãe dos céus e rainha dos anjos, tenhas piedade de nós, teus humildes cordeiros — batina negra ajustava-se dando ombros largos ao homem calvo. Maduro, seu tom litúrgico era severo e imperativo, e as linhas da idade lhe emolduravam a face — Tenhas piedade por nossas almas pecadoras.

Prateada lua crescente com a descente haste ao centro era ostentada no amuleto do peito do sacerdote, e da mesma forma em uma réplica maior entre as velas anis dos castiçais sobre o altar áureo. A cruz de Vênna simboliza o luar e o amanhecer sobre a Terra, ao mesmo tempo que representava a própria Deusa, com a silhueta da entidade com as asas erigidas. O aroma da cera e das pétalas queimadas envolvia as duas centenas de nobres, na missa dedicada à corte, na Catedral d'Karna.

Sua fala era imponente, única, acorrentando a atenção dos presentes com as firmes palavras. Sinfonia do órgão de tubos dourados era dedilhada discreta ao fundo.

— Somos guiados pelos vossos passos — continuava o sacerdote. Imperceptível, uma leve dissonância ecoava pelas paredes internas da catedral — Somos servos de vossa vontade, oh, rainha dos reis — reverberação crescente tocava os ouvidos sem distinguirem a origem ou razão — Somos teus agentes em terra — a cada fala, a segunda voz que pairava sobre a cabeça de todos tornava-se mais nítida, afligindo arrepio e temor sorrateiros — Somos os enviados para espalhar tua palavra.

Tua palavra...

Angustiante, carregada de sincero e sombrio sofrimento, a voz paralela revelava-se sem pudor.

Olhos se erguiam aos ricos afrescos e colunas esculpidas, buscando a fonte. Em suas mentes, as imagens de anjos e santos zombavam deles, da casta de elite de Karnácia. Hesitação generalizada se alastrava como uma maré e o sacro-orador perdera o ritmo enquanto a música persistia imaculada.

E como um desafio à velada presença e forma de demonstrar pujança ante os fiéis, ele persistiu, agora em clamor eufórico.

— Somos dignos e submissos ao vosso, E SOMENTE VOSSO — Novamente a voz oculta replicou a fala do sacerdote, sinistramente ao mesmo tempo, porém, a cada palavra escalando em presença. E no ápice, suprimiu o orador — Julga...

— JULGAMENTO!Bela e desprovida de malícia, somente da pureza fatal, a voz agonizante concluíra a oração sem receio de proferi-la na casa santa.

O sacerdote dera um passo para trás arregalando os olhos, vasculhando nas sombras do teto. A sinfonia parara e muitos se levantaram, assombrados, tumultuando.

Porém, a brisa outonal intensificou-se. Rajadas se avolumaram, lambendo os jardins de fora e sacudindo as antigas árvores. As pesadas portas, das quatro entradas do Catedral, foram sopradas e fecharam-se em pancadas que trovejaram ameaçadoras. A força do vento fora tanta que os bem-feitos vitrais implodiram em uma sequência randômica, chuviscando estilhaço sobre todos, desfazendo o sombreamento multicolor agradável do grande salão.

O JULGAMENTO SAGRADO!

Neste mesmo instante em que os vitrais se desfaziam em milhões de cacos, a sombra do alto dos alicerces se solidificou e alçou sua revoada predatória. Com a investida de uma águia e silhueta de morcego, a entidade sombria descia ao salão ignorando a luz das janelas irrompidas. A mão servia de garra com unhas longas e agarrou ao pescoço de uma mulher que hesitava, a usando para amortecer a queda enquanto pousava cravando a espada no coração.

Karnácia: Condessa ProfanaOnde histórias criam vida. Descubra agora