Sem putrefação ou deterioração carnal senão a ferida causada, os vestígios de memória que residiam nos estilhaços espirituais contavam trechos partidos de um passado indecifrável. Um curto histórico podia ser interpretado, cada vez com menos precisão conforme Amaon tocava o peito lacerado de uma criatura que, por vontade de servidão semelhante à dele própria, entregou-se ao desígnio do Criador em sacrifício.
Amaon sofreu física e mentalmente para sorver qualquer aspecto além do remorso residual e coletou, como ruído da profundeza, imagens de outra vastidão que careciam de ordem. Absorver o sentido pleno era impossível e as figuras que abstraía lhe traziam perguntas e conjecturas, dentre elas se a capacidade de sentir espíritos derivava do estudo dos escritos ou de sua mera criação. A resposta, por fim, era irrelevante, pois de um jeito ou de outro tinha certeza que o deus-escravo, em sua natureza exótica, assim desejava que fosse.
A essência morta se esvaiu no éter e o rastro decadente jazia impregnado na carne, e fora na carne que ele se aprofundou sem pudor. Partiu pela fissura já feita e a expandiu com os dedos. A força que lhe fora presenteada por Almondar permitiria despedaçar, então aplicou sutileza. Sem expressar aversão, asco ou hesitação, abriu o peito do cadáver perenemente fresco, jorrando o fluído carmim pelos flancos da silhueta, empoçando o leito rochoso. Removeu os ossos pelo caminho e contemplou, conforme extraía, as estruturas carnosas de funções incertas. Os órgãos serviam para uma complexidade além das necessidades que existiam no mundo, presumindo que aquela criatura feminina era formada para algo a mais, além do que ainda existia, intrigando-o.
O sangue escorreu pelas fendas do solo, ornando-as e preenchendo-as, para ali habitarem para sempre. A resistência entre músculo e derme foi vencida pela força das mãos, e a pele foi esfolada por completo, sendo separada com cuidado tal uma tapeçaria. Os ossos foram extraídos e empilhados sob a parede mais larga do Cume e as vísceras sepultadas em um dos lagos negros. Só assim Amaon teve certeza que assimilara tudo o que havia para ser absorvido. O ato não fora grotesco aos olhos dele, mas puramente exploratório, e por mais macabro que fosse, enquanto a tinha como objeto de estudo, sentiu-se acompanhado. Na verdade, só percebera isto quando uma estranha solidão lhe ocorreu após o ato.
Agora, restava-lhe esboçar as imagens que lhe fertilizaram o pensar.
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O Éter turvou-se, os cascalhos se alinharam e a figura se estabilizou a partir do pó. Em seus braços havia um novo ente, agora masculino, igualmente desacordado. Galgou os degraus que antes não existiam, pois foram polidos onde havia uma mera saliência no Cume. Aos lados, pilares e uma cobertura de rocha estavam erguidos, com inscrições de referências sobre o rito de passagem do deus-escravo, feitos pelas mãos do ente.
— Havia uma entrada. Uma porta. Um portal. — Amaon recebeu a seu criador, dando a ele uma explicação para o ornamento feito ao redor do ponto de materialização. — Vi nas memórias. — Soava como uma justificativa para um crime assumido.
Depois do que parecera uma Era de ausência, Almondar retornara e encontrou sua criação mudada — ambas as criações. Vira que a cama de pedra estava vazia, disponível de novo, e o que o corpo estava desossado, enfeitando a planície da montanha. Notara que neste período Amaon gravara sob a própria carne gris símbolos espirituais em vermelho, usando uma mistura de pigmentos feitos de minerais e fluidos cadavéricos, usando lascas de ossos para se perfurar.
Amaon era parte do mundo em um sentido literal.
Almondar se orgulhava de sua obra-prima ímpia e pura, a mais poética e sagaz dentre todas que iam além daquela dimensão de princípio apócrifo.
— Eu sei o que é um portal; e eu aprecio o teu presente. — Ele via orgulhoso que sua cria evoluía por contra própria, mas não se expressava de acordo devido a carga de melancolia e ódio nele mesmo.
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Karnácia: Condessa Profana
Werewolf(Gótico Erótico +18) "Seus dedos deslizavam de um lado para o outro sutilmente na superfície lisa da taça, enquanto acariciava a silhueta dela em suas lembranças." Aqui principia-se um Universo Gótico, da essência cavaleiresca medieval até a vitoria...