07 - Hera

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Neve insistia em derramar-se por Karnácia. O condado murado abraçava o ar frio e desacelerava o ritmo. Comerciantes, camponeses, artesãos e toda sorte de habitantes buscavam conforto de suas moradas, refugiando-se do frio crescente. O inverno prolongava-se sobre a primavera de forma anormal e chaminés acesas ornavam toda a paisagem. A vista da varanda do palácio fazia a clériga recordar das belíssimas pinturas escondidas no subterrâneo da catedral, onde labaredas rubras levantavam fumaça em poços de fogo infernal.

O casaco grosso lhe trazia peso nos ombros e lhe confortava enquanto os pelos da vestimenta sacudiam com a brisa. Flocos alvos despencavam aleatoriamente e aos poucos seu negro cabelo, liso e curto até os ombros, ficava enfeitado de pontos brancos. Mesmo ali fora, apreciando o frio que tanto lhe fizera companhia naquelas terras obscuras, Méry Rosea pode ouvir a revolta de sua condessa.

Sua condessa. Como se pudesse chamá-la assim.

Os sapatos afundaram centímetros na película de neve que já se formava e ela adentrou ao salão, fechando as portas de vitrais, deixando a lambida intrusiva dos ventos gélidos para trás. Caminhando sobre a rica tapeçaria, aproximou-se da lareira sentindo como se ela aquecesse até a alma. Removeu as luas, as deixando ao criado de leitura e desprendeu o broche. Suas vestes eram de uma dama nobre, vestido de tecido branco importado de muito longe, luxuoso, mas sem exageros — algo que jamais teria condições de bancar com o trabalho comum ao longo de anos.

Um grito incompreensível veio do quarto de porta entreaberta.

Ira era regurgitada sem impedimento da garganta da dama sombria.

Só parecia piorar, e Méry decidiu que tentaria intervir. Afinal, como conselheira, poderia — e deveria — estar ao lado de sua senhora. Evitara, contudo, durante a manhã inteira entrar diante da fúria de Kállina. A fama da condessa gerava medo irracional no povo, a fazendo ser temida até mesmo pelos seus serventes. Diferente dos outros, Méry nunca a temera. Porém, aquela perturbação na governanta do condado era sem igual.

Encorajou-se afastando-se das flamas reconfortantes, sentindo o corpo esfriar com os flocos que derreteram por cima de sua roupa. Visualizou sobre uma mesa uma jarra de vinho ao lado de um cálice vazio, e em sua ingenuidade tratou de encher para trazê-lo consigo. O ar se tornava estranhamento sufocador conforme aproximava-se do quarto mais ostensivo do palácio. Antes mesmo de adentrar, reconhecera parte da mobília do aposento, derrubada ao chão em pedaços, fruto de uma força desproporcional a uma mulher comum.

A porta rangeu levemente e a jovem clériga torceu para que fosse o bastante para denuncia sua chegada. Não bastara ou não fizera diferença, pois encontrou Kállina ao centro do cômodo, ao lado de sua cama partida ao meio, voltada estática contra a entrada.

— Minha... senhora? — tímida, receou em perturbá-la.

Ignorada a princípio, analisou melhor o cenário destruído. A cabeceira estava rasgada em várias partes por cortes e golpes de faca, como se um animal tivesse tentando fugir da prisão. O armário, igualmente golpeado inúmeras vezes, tendo a lâmina cravada onde foi o último ataque. Livros, sempre amados e cuidados pela Condessa d'Karnácia, se espalhavam avariados aos montes, dando-lhe noção da tormenta que ali ocorrera. O ataque de insanidade tomou Kállina desde a noite anterior, quando seu amante, Dyron, deixou o condado sobre seu cavalo.

Não deixou.

Fora expulso.

— Irgara... — Kállina rosnou fitando dentro da própria mente. Enfim Méry decifrara os bramidos, pois era este o nome invocado por várias vezes. Era um nome conhecido, na verdade, mas sempre evitado, pois denominava a Mãe das Abominações, a entidade obscura da punição e da bruxaria.

Karnácia: Condessa ProfanaOnde histórias criam vida. Descubra agora