(conto) MÉLICA MALÍCIA - Parte III: Orgíaca Tragédia

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Clarões, dos céus rasgados em lampejos azuis-esbranquiçados, tornavam nítidos por um átimo a mata desalumiada. A fúria do paraíso de nuvens negras assombrava o mundo, engolindo o horizonte em caos vindouro. Ainda assim, a brisa gélida lhe era uma dádiva e as gotas frias que surgiram espontaneamente lhe envolveram, refrescando-lhe a carne que ardia do âmago para a fora.

Estacou em nenhum ponto particular do descampado, exaurida pelo tanto que demandara dos pés. O peso extra em seu ventre lhe castigava, assim como sua sede. Ao nada, da floresta sem fim, observou-se, sorrindo em desespero do teatro que era a tragédia de sua vida. Todas as peças moveram-se perfeitamente em seu passado para guiá-la àquele ponto, criando a mais pura e terrível punição.

Gotejava sobre sua face e se perguntou qual dos deuses chorava por ela.

Mas a resposta não viera do divino.

Rosnados cresciam a seu redor, respirações intimidadoras e rasteiras, ocultas sob a relva. Em distância imensurável pela escuridão, inumanas esferas, alaranjados e mordazes, surgiram e se multiplicaram, a espreitando de todos os ângulos. Lúmia paralisou, engolindo o sorriso desesperado. Via-se rodeada por demônios que vieram buscar satisfação sobre seus atos.

Brisa moveu seus fios e na mesma ondulação deixou que o sopro lhe derrubasse de joelhos, tombada como folhagem outonal. Recordou de orações, dos sinos do mosteiro, da vida santa que procurara e falhara — e da vida profana que fugira e reencontrara.

O ventre pulsou. A gestão encontrava seu fim e as criaturas noturnas vieram buscá-la. Ela tinha certeza de que o julgamento de Ádrus continuava recaindo sobre seu caminho e que teria a conclusão antes do alvorecer.

Os rosnados eram anunciados contra ela e entregou-se à vontade dos espíritos por detrás de tantos olhos selvagens, apostando que nenhuma tortura seria pior do que já sentira.

— Deixem-na! — A ordem surgira e fora efetiva no instante exato, fazendo as criaturas baixarem seus olhos e retrocederem. Um raio se expandiu como uma raiz colossal no céu acima de sua cabeça e lhe dera a breve clareza. Eram lobos cinzentos. Dezenas deles, com as orelhas pontudas, pelo arrepiado e dentes afiados.

Lúmia jurara ter ouvido o timbre de Ádrus e se encheu de falsa esperança pelo sombrio, pois poderia implorar por ajuda.

— Ádrus. — Levantava com cautela vasculhando os arredores por ele. — És tu?

— Ádrus? — novas esferas alaranjadas surgiram, desta vez elevadas, na altura de um homem, e viera de encontro a ela, desvelando-se conforme a lua cheia perfurava as nuvens gris. — Por que procuraria por aquele ser? — Se tornava claro que não se tratava da voz de Ádrus. — Por acaso pareço com ele?

A silhueta se aproximava. Era um humano comum, com exceção dos olhos e as pontas afiadas dos caninos ligeiramente maiores. Seus trajes desgastados remontavam a um antigo fidalgo decaído. Um que teria aderido à vida selvática. A barba era grande, ostentada sobre o peito desnudo pela camisa rasgada, o cabelo negro e cacheado crescia livre há anos, como belos ramos naturais pendendo de sua cabeça.

— Não. — Lúmia o olhou bem enquanto ele fazia o mesmo. — De nenhum modo.

— Por que uma grávida andaria despida por este bosque? — Seu tom era cavalheiresco, mas não perfeito. Ficara tempo demais longe da nobreza e desaprendera parte dos modos. Esta combinação lhe concebia com um ar rústico e curiosamente charmoso.

Só os dois estavam no descampado. As gotas de chuva persistiam, mas não cobriam mais totalmente o firmamento. O luar deu-lhes luz. Por mais bizarro que fosse a circunstância, o estranho lhe transmitia profunda segurança, uma autêntica, sem feitiços. Era alguém que, apenas em seu modo de ser, olhar, na postura, transmitia conforto e proteção. E isso lhe fora perturbador por outro lado.

Karnácia: Condessa ProfanaOnde histórias criam vida. Descubra agora