(conto) GUARDIÃO D'ANGÚSTIA - Parte I: Deus-Escravo

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"Este conto é um tributo à angústia; a soberana dor inspiradora."


Distorcidas nuvens no céu índigo, sugadas pela pálida brancura do sol sem calor, era a sempre hedionda promessa de tempestade apocalíptica que jamais se concretizava na entropia letárgica. O singular e discreto astro de núcleo minúsculo, flertava com calmaria descomunal sobre a terra de pedras, nunca poente ou oscilante, expandindo seus dendritos ao infinito oposto em translúcidos tentáculos luminosos. Lagos negros ornavam vales vazios, rochas e fragmentos se empilhavam pela vastidão reinada pelo eco espectral dos ventos etéreos. O firmamento findava em montanhas inalcançáveis, de alicerces negros e cumes clareados. Era uma existência crua, pronta para ser moldada sob o toque, mas desprovida de propósito, pois assim era mantida a vastidão onde a vida era abominada e extinta.

Em um planalto quase artificial, ilusoriamente ao topo e ao centro do mundo, o único que ali existia rastejou por entre os pilares rochosos e estalagmites, para se deixar cair pelo peso de si mesmo, prostrando-se nos joelhos. Os braços se ergueram aos céus de beleza infernal e entregou a eles a carga que havia em seu peito, rasgando para fora da garganta o brado de lágrimas de pura amargura. O encapuzado em túnica cinza retumbava sua frustração, ecoando-a através das camadas dos ventos, pois ele era o deus-escravo daquele mundo.

Áspero. Mórbido. Possante.

Cria e Criador.

Ali permaneciam por incontável tempo, isentos de incômodos. A distorção do envelhecimento era um aspecto perturbador e admirável, notável em cada lasca do solo e em cada fio de cabelo. A juventude de ambos era preservada pela eternidade, junto do caos e a insanidade.

Por vezes, ignorava por completo seu incalculável domínio sobre o mundo e desferia os punhos nus contra as superfícies, até que pedra e carne se rasgassem. Tingia trechos randômicos da paisagem por onde caminhou com as mãos sangrentas de ossos à mostra, gotejando pelo manto encharcado em carmim.

Ao arrefecer e abrandar a respiração, ele se desvanecia junto da brisa de seu peito.

A partida era tão certa quanto o retorno, e o ciclo de angústia também.

E ao passar das Eras daquela existência, elaborados desenhos em sangue e ranhuras já eram ornamentos das muralhas naturais e o mundo se tornava um grimório de páginas desordenadas, mas também um desabafo de pensamentos insaciáveis sempre em dilatação. Os lagos inertes, os rios que rastejavam em círculos e os mares que ondulavam além do contemplável, todos se turvavam em negrume, cada pouco mais, em infinita lentidão.

Não bastava.

Em algum ponto, em algum caminhar, os elementos angustiantes prevaleceram. Seus músculos tiveram espasmos, os dedos tremularam, os olhos reviraram-se, e em resposta desesperada e quase instintiva, estendeu o braço, descarregando uma imensa carga energética, dilapidando uma coluna.

O que restara do alvo, era um pedaço, uma silhueta incompleta. Em epifania ou ferver mental, vislumbrou o improvável. Lascando pedra em pedra, dando os detalhes com as unhas quebradas, escavou e talhou a figura hedionda. Um colosso de essência vazia, aquele que poderia ser privilegiado em tornar-se o primogênito daquela dimensão. Ante a imagem se sentou cruzando as pernas e o venerou em prazerosa contradição; nada conseguiria ser mais poderoso que ele mesmo, mas era nas possibilidades da limitação que viu a graça.

Em quietude ele observou e refletiu, fixando total atenção na figura sem propósito. Poderia esculpir com o dobrar dos dedos milhares ou milhões iguais, mas todos seriam igualmente vazios. Deveria haver só um, pois só um seria o suficiente.

Karnácia: Condessa ProfanaOnde histórias criam vida. Descubra agora