(conto) GUARDIÃO D'ANGÚSTIA - Parte III: Esfera Umbra

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O princípio veraz é incerto. Dizem os cronistas que fora filho de mercantes de caravanas das terras além-mar; ao mesmo tempo que bardos contam que fora um príncipe bastardo, exilado pelo próprio pai ao matar o irmão herdeiro. O que se pode afirmar é que ficara imensamente mistificado após seus serviços de conselheiro ao lado de um rei mago do deserto, onde fora dignitário em um milênio distante. Neste ponto ele já havia desvelado parte dos segredos do rejuvenescimento, sendo então um ente secular que causava fascínio e adoração. Em relatos ele desaparecia, ressurgindo com o mesmo nome nas sombras de outros grandiosos da antiguidade.

Genialidade, cobiça e oportunidade foram elementos presentes no tracejar de suas passagens. Os méritos estavam mais que justificados, pois transmutar ouro era apenas um divertimento à parte. Tinha a riqueza que desejasse às custas da alquimia e a usava com cautela, mesmo assim, luxo lhe trouxera conforto apenas nos primeiros tempos de vida de um mortal. Era um sábio com potencial de ser o homem mais poderoso sobre o mundo, contudo, também vagara pelos ermos como ermitão e nômade, muitas vezes sem nada carregar senão a túnica velha para recomeçar sempre que sentia a necessidade. Seu nome se tornava lenda e seu jeito de agir era cíclico e calculado; após décadas de estudo e trabalho, atingia o reconhecimento almejado em um lugar específico, para então revelar a verdadeira identidade momentos antes de desaparecer.

Era a vaidade.

O máximo de regozijo que sentia na vida.

Abandonara tudo o que conquistara para trazer consigo o que aprendera, tendo prazer em ser caçado pela mais diversa sorte de opositores que o invejavam, emboscando-os, assassinando-os, exaltando sua inteligência maliciosa. Soberanos, magos, clérigos, demônios, anjos, bestas; enganara a todos. Na realidade, não abandonava completamente suas conquistas, pois seu sangue, imortal, era proveniente do elixir que alcançara por experimentos em si mesmo e jamais partilhara, fazendo dele mesmo um troféu vivo. Cruzara desertos nevados e arenosos, galgou por planícies de fogo e gelo; cavalgara pelas estepes assoladas ao lado de mercadores aventureiros e navegara em porões de naus imundas junto dos primeiros a pisarem em terras além dos mapas. Testemunhara afloramento e declínio de civilizações, e colônias emergirem para se tornarem independentes e estas estabelecerem e subjugarem suas próprias colônias. Permeou pelas múltiplas facetas das mesmas guerras, favorecendo um lado ou o outro com invenções e conselhos de acordo com sua vontade e curiosidade de propósito íntimo. Vira as constelações se reorganizarem de tão distante que viajara e delongara a vida.

Tentara por vezes ter acompanhantes fixos, sem confiar em plenitude neles, mas a necessidade lhe fazia tomar sempre este caminho. Por solidão, ou excesso de conhecimento, seu destino lhe demandava acólitos, e, em quase todas às vezes, estes se tornavam inimigos poderosos que tentaram destroná-lo de sua figura mítica. Confiar era impossível e migrava pelos territórios deixando rastros de tragédia que lhe atormentariam, acabando por focar sua mente na busca de mais saber para que os pensamentos conflituosos não o alcançassem. Ávido por alternativas, dera então início a manufatura de seu primeiro artefato. A cada parada, para construir uma nova figura de si mesmo, construíra um laboratório com o melhor que o século de cada povo tinha a ofertar. Com o avanço dos tempos, cunhara a Esfera Umbra, de funcionalidade infinda, condensando seu poder alquímico no interior, onde dedicou anos consecutivos de meditação diante, procurando respostas no mesmo ponto onde descarregava incertezas.

Ele vivera em demasia em todos os sentidos cabíveis a um humano. O desgaste e dilemas mal podiam ser imaginados ao mais vivido dos anciãos. Os crimes cometidos em nome de sua obscura ciência eram relevados, enxergando-se acima dos ciclos naturais da carne e da crença. Não havia pecado aos imortais; o julgamento divino era um aspecto ao qual burlara. A nada e a ninguém devia obediência, e mesmo assim, lutava constantemente consigo mesmo, travando embates épicos de moral entre posicionamentos distintos da consciência; contra aspectos de quem ele era e de quem ele fora. A insanidade era um fantasma mais difícil de desvencilhar que a sombra sob o sol tardio.

Karnácia: Condessa ProfanaOnde histórias criam vida. Descubra agora