Capítulo 2 (terceira parte)

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III

Depois de várias horas de sono e de me alimentar direito, eu me senti melhor, acho que era isso o que eu estava precisando. Peguei meu celular e fiquei olhando, me sentindo bobo, e olha que o meu celular na época só servia para ligações e mensagens, além de tirar umas fotinhas toscas, se fosse hoje, com toda a tecnologia, imagino como eu me sentiria. Eu sabia que não haveria ligações e mensagens do Igor porque ele disse que não ligaria e nem tinha obrigação de ligar, não é como se fosse uma obrigação ligar para a pessoa só porque teve o prazer de comê-la. 

Mas intimamente eu queria que ele ligasse, nem que fosse para falar de outras coisas, eu mesmo estava prestes a fazer isso, ligar para o número da mãe e pedir para falar com ele, e talvez com a mãe ao lado ele me ouviria dizer que aquela noite tinha sido a melhor coisa que podia ter me acontecido, e suas bochechas ficariam coradas e ele gaguejaria por não poder mandar eu me fuder, mas pensando justamente em fazer isso, e por imaginar que isso aconteceria, eu deletei o número da mãe dele do meu celular, assim não corria o risco de ceder a tentação e ligar.

À tardinha saí um pouco para distrair, fui a uma festa aberta, patrocinada pela prefeitura, onde encontrei alguns amigos com os quais raramente eu falava, tudo normal, menos o fato de eu esperar encontrar mais alguém e olhar as entradas a todo instante. Não encontrei, o que foi estranho, pois não havia muitas opções de diversão para pessoas da nossa idade na ocasião, então fui embora cedo, andando devagar, chutando as latinhas que encontrava pela rua. Tédio. Ansiedade. 

Mas a segunda-feira trazia trabalho e rotina, então eu entrei no ritmo e senti menos a falta das mensagens e ligações, pensando que era bom o fato de ele estar ali, a poucas ruas de distância, ainda que sem comunicação, porque em algum momento nossos caminhos se cruzariam na realidade palpável e isso fazia valer a pena a espera e o silêncio.

Mas passou segunda, terça-feira e nada, apenas nas minhas noites sem sono eu me permiti enviar mensagem para o celular dele, dizendo o quanto eu estava com saudade das nossas conversas, para que ele recebesse depois, quando pudesse. Era uma rotina de meses e eu me sentia bem em manter.

Na quarta-feira, por volta das quatorze horas de um dia tão quente que nos fazia confundir as estações do ano, eu estava na loja, distraído como sempre, conversando com um colega, quando vi passar do outro lado da rua um carinha muito alto, de bermuda e boné. Claro que era o Igor, olhando para as vitrines do lado oposto, o filho da mãe. Claro que ele sabia onde eu trabalhava, eu tinha dito e ele conhecia a cidade, se passou pelo outro lado foi porque quis fazer hora com a minha cara ou, numa hipótese ruim que me veio à cabeça naquele momento, ele não queria me ver. Segurei o nervosismo, respirei fundo e como quem não quer nada, fui até a porta e parei lá, eu não podia simplesmente atravessar a rua e ir até ele, além de zelar pelo meu emprego, eu ainda tinha algum orgulho.

Fiquei perto da porta por alguns minutos e depois fui para os fundos da loja tomar o café. Quando voltei, vi que o Fernando, meu colega de trabalho, estava atendendo ninguém menos do que o chato do Igor, me aproximei com cautela e ouvi ele pedindo informações sobre um aparelho da vitrine, disse que estava só olhando. Quando me viu, ele falou como se eu fosse um grande amigo que não via há tempos e melhor, como se não soubesse que me encontraria ali. Para não atrapalhar a nossa "amizade" de longa data, o Fernando saiu e eu fiquei mostrando os aparelhos ao Igor, que logo me confidenciou que já tinha mandado consertar o dele na concorrência.

— Traíra — comentei entredentes, mas rindo.

— A loja é do meu tio, ganhei desconto, né. Não vou comprar um novo tão cedo.

— Quando ligar seu celular, vai ter umas duas mensagens lá.

Ele abriu os olhos e a boca, como se estivesse surpreso. Mas a preocupação era séria.

Meu Mais ou Menos Inimigo (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora