AGOSTO, 15. 2014.

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Selena cruzou e descruzou as pernas um total de três vezes antes de suspirar cansada e decidir explicar a situação para a psicóloga. A mulher que a encarava num silêncio compenetrado era vermelha, o canto dos olhos marcados pela idade. Ela parecia gentil, mas também parecia ser capaz de proferir palavras ríspidas se necessário.

– Eu acho que estou enlouquecendo. – Selena soltou, subitamente, esperando que o mundo virasse para o lado e a fizesse cair numa realidade estranha, em que uma lua verde brilhava como um delírio no céu.

A parte mais estranha, contudo, foi o silêncio que a respondeu. A mulher permaneceu calada, esperando-a proferir os seus motivos.

– Eu acho que estou vendo coisas que não existem. Bem... Não coisas, coisas... Mas pessoas. Pessoa, uma única pessoa. Um homem. – Os olhos de Selena estavam fixados no aperto de suas mãos, as unhas enterradas na pele, esperando encontrar sangue. Tornando-se consciente de que estava sendo observada, soltou as mãos, levando-as para ajeitar os cabelos. – Eu não penso nele como um homem, sabe, como nós, seres vivos, humanos... Para mim, ele é como um pesadelo recorrente, uma verdade terrível sobre mim mesma. E eu acho que os sonhos significam algo... – Passou a língua nos lábios, umedecendo-os para ganhar tempo. – Algo que eu não entendo. E eu sempre acordo em algum ponto da noite, assustada por algo intangível. Eu demoro a voltar a dormir, e quando finalmente durmo, não lembro de o ter feito. Quando acordo no dia seguinte, eu sempre estou me sentindo exausta ou... Excitada. Ou ambos. E ultimamente eu estou tão cansada que eu acho que estou sonhando de olhos abertos. Sabe... Vendo esse homem, essa fantasia minha, perseguindo-me pelas ruas. Você acha que eu estou louca?

– Quando você começou a ver esse homem?

– Não lembro quando começou, parece que já faz tanto tempo. Provavelmente logo depois que eu cheguei em Berlim. Às vezes, parece que ele sempre esteve lá, no canto da minha mente, esperando pelo momento... Para se relevar! – Selena percebeu a voz fraca e trêmula que vazou pela sua boca. Soava como uma garotinha assustada, nada como ela era.

– O que significa estar louca, para você?

– Isso! – ela quase gritou. – Eu digo, ver coisas que não existem, ouvir coisas que não existem!

– E como você pode diferenciar esse estado de possível loucura de um estado de lucidez total?

Selena abriu a boca para responder, somente para encontrar-se com dificuldade para articular palavras.

Como poderia saber o que era normal e o que era loucura?

Ela tentou se lembrar de como eram seus dias antes da aparição do homem de olhos dourados em seus sonhos.

Quando chegou em Berlim, a primavera aproximava-se. Apesar disso, Selena sentia as extremidades dos membros gelados constantemente. O sol iluminava o dia, mas não oferecia conforto com o seu calor. Ela sentia falta do litoral da cidade em que crescera, da água morna acariciando os pés, do sol afundando-se no mar, pintando suas águas de dourado. Sentia falta dos amigos que deixara para trás, pelas três cidades em que passara. Ela não sabia o que sentir em relação à distância de sua família, era uma sensação irritante e persistente na boca do estômago, que tinha dentes que machucavam suas entranhas.

Quando o verão finalmente chegou em Berlim, conseguiu apreciar as belezas escondidas por baixo dos dias tristonhos. Folhas que cantavam ao serem arrastadas pelo vento, prédios que evocavam lembranças de outras eras, fantasmas que habitavam ruas, anjos que desapareciam reluzentes por trás de monumentos de vidro espelhando o tráfego. Selena havia feito novos amigos: Hélio, Lizandra, Augustine, Hannah, Gisa e seu irmão mais novo Nicklaus. Apesar do estresse corriqueiro que envolvia a alta carga horária de estudos, conseguia encontrar tempo para aproveitar com os amigos. Eles a faziam rir até sentir que sua barriga ia estourar, e, às vezes, eles compartilhavam histórias que a faziam chorar como se fosse a única a ter as vivido na pele. E ainda... Sentia-se uma fugitiva de sua antiga vida em um novo país, onde ela poderia contar qualquer história para reescrever suas memórias. Eram raras as ocasiões em que trazia seu antigo país à tona; quando o fazia era para comentar acerca da comida, das cidades que visitara, da saudade do sol ardente... Jamais das suas memórias de infância, aquelas em que sua mãe a obrigava a vestir luvas e socar um boneco de pano, em que seu pai sumia por meses, em que a pequena Selena mal poderia se lembrar dos nomes dos seus avós. Não haviam fotos de famílias. E seus tios só a visitavam em datas comemorativas. Seu primo a olhava como uma estranha que havia encontrado atrapalhando sua passagem. Seu tio nunca a segurara nos braços, e sua tia morrera cedo demais.

Essas lembranças eram seu estado de lucidez total. Ela contou isso à psicóloga, esperando receber em troca uma resposta sábia para seus problemas.

Ao invés disso, foram-lhe lançadas palavras cruéis.

– Conte-me mais sobre a sua infância.

– Não há muito para ser dito. Eu cresci me odiando, me sentindo um fardo para os meus pais, como se eu nunca fosse ser o bastante para eles. Por isso, eu sempre estudei e me esforcei bastante para conseguir a atenção deles. Na juventude... Não foi fácil... Eu passava dias foras. Às vezes esquecia de tomar os remédios para controlar a minha diabetes por uma semana, e eu lembro de me sentir muito mal. Eu voltava à casa cheirando a cigarro e a bebida barata. Eu tive um relacionamento desastroso com um... – Como poderia traduzir a raiva que só poderia ser exprimida pela palavra "cara" na sua língua natal? Não havia uma palavra em alemão equivalente a ela. Suspirando, falou – rapaz babaca. Eu e minha mãe brigávamos o tempo todo. E meu pai parecia ter nenhum interesse em minha vida. Eu tenho certeza que ele não sabe qual a minha idade. Na verdade, eu tenho certeza que ninguém na minha família, além da minha mãe, sabe a minha idade, ou o que eu estudo, onde eu estou...

– Você falou a eles sobre o que estudava?

– Algum dia, eu devo ter comentado. Mas...

– Você falou a eles que estava se mudando para estudar em Berlim?

– Eles nunca perguntaram. – Selena cruzou os braços. – Eu não vim até aqui falar sobre os meus problemas familiares! Eu só preciso que você me diga o que os meus sonhos significam! E me passe algum remédio para dormir!

– Meu trabalho não envolve medicá-la. Se você quisesse isso, de verdade, teria ido a uma psiquiatra.

Selena queria revirar os olhos. Ela quase não conseguiu resistir ao pequeno ato de rebeldia.

– Seus sonhos possuem evidente teor erótico, mas também parecem esconder algo que lhe causa medo e repulsa. – Disse a mulher, encarando-a nos olhos sem vacilar. Para entender os seus sonhos, nós precisamos compreender quem é você, Selena. – Eu não acho que esteja louca, provavelmente confusa, certamente agitada e estressada devido à privação de sono.

– O que eu faço?

A mulher ofereceu-lhe um sorriso encorajador.

– Juntas, nós podemos descobrir o que está acontecendo.


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Então, o que vocês acham que está acontecendo com a Selena?

Obviamente, como uma animada estudante de Psicologia, eu tinha que 1) incentivar que as pessoas procurem ajuda especializada para atenuar os seus sofrimentos e 2) jogar um diálogo com uma psicóloga porque sim, pode revelar muita coisa. Fiquem ATENT@S!

E se você estiver passando por dificuldades, procura ajuda <3 Lembra que você também é importante!

Nada a ver, mas vocês já pararam para escutar o álbum do Harry Styles? É um hino! Façam isso, por favor!

A SIDE: SELENA // Under Your Skin //Onde histórias criam vida. Descubra agora