Capítulo 6 - Carona

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“Que gato mais sinistro”, pensei.

Estava na sala da Srta. Weiss em mais uma sessão, mas por alguma razão bizarra, para a Srta. Weiss era um bate papo entre amigas. O que era estranho, já que só eu é que respondia suas perguntas e ela, nada.

– Srta. Kilvert, pare de olhar o mural e responda a pergunta. – Disse a Srta. Weiss batendo a caneta sobre o caderno.

– Como posso responder algo que não sei explicar? – Disse novamente olhando para ela. – Acredite, já tentei várias vezes me lembrar do passado, mas por mais que eu tente, o resultado é sempre o mesmo. A escuridão.

– Mas o que aconteceu depois que foi parar no orfanato?

– Convivia com as outras crianças, embora nunca brincasse ou assistisse TV. – Agora que ela tocou no assunto lembrei que tinha medo da TV. – Eu tinha medo da TV.

– Por quê? – A Srta. Weiss se acomodou na cadeira.

– Eu...  – Comecei a rir. – Pensava que na TV havia demônios.

A Srta. Weiss franziu a testa.

– Era como se eu nunca tivesse visto uma na vida. As outras coisas também. Carros, telefone, máquina de lavar.

– Mas tirando os aparelhos eletrônicos. Você não sentia medo de outra coisa?

– Não. Às vezes tinha sonhos, ou ao menos, acho que eram.

– Como assim?

– Eu acordava no meio da noite ouvindo alguém chamar por mim.

– Seu nome verdadeiro? – Era impressão minha ou a Srta. Weiss estava interessada demais no meu passado?

Pensei um pouco.

– Não. A voz me chamava... Pequena dama. – Que coisa! Fazia anos que não me lembrava disso. – Sei que ninguém me chama assim, mas de alguma maneira sabia que era eu. E também tinha aquela sensação.

– Que sensação?

– Uma sensação de algo ou alguém faltando.

A Srta. Weiss me observou confusa, como se não fosse a resposta correta.

– Desde que fui parar no orfanato, tenho a sensação de que preciso encontrar alguém. E que essa pessoa é muito importante. Assim que ela me encontrar vou para outro lugar. Não estou falando coisa com coisa. Desculpa. – Baixei a cabeça.

– Tudo bem. – A Srta. Weiss sorriu. Ela iria falar algo, mas o alarme de seu celular disparou, avisando o final do nosso bate papo.

– Amanhã no mesmo horário? – Perguntei ao pegar a mochila.

– Infelizmente, amanhã tenho que resolver uns assuntos pessoais.

– Tudo bem. Depois de amanhã?

– Sim. – A Srta. Weiss se levantou e abriu a porta.

Despedi-me dela e fui até o estacionamento esperar pela minha irmã, que foi encarregada de me buscar após as sessões.

Procurei um banco próximo de uma árvore e me sentei.

Queria ter um livro para ler. Pena que minha estante continuava confiscada e bem protegida no quarto dos meus pais. Sem outra alternativa comecei a viajar nos meus pensamentos, ou melhor, nas coisas que decidi esquecer.

O que pode ter acontecido de tão terrível na minha infância, que impede que eu lembre?

Será que meus pais eram da máfia? Uma coisa meio “Poderoso Chefão”. Talvez meus pais mataram o cavalo de alguém e esconderam a cabeça na cama do inimigo como aviso. Credo! Preciso parar de assistir a filmes antigos durante a madrugada.

A fome apertou e voltei para a escola. Por sorte no refeitório havia duas máquinas de bobagens: Uma de salgadinhos e chocolate e outra de refrigerante. Gastei meus últimos três dólares em uma lata de refrigerante, um pacote de batatas chips e uma barra de chocolate.

Antes de voltar para o banco, já tinha devorado minha barra de chocolate. Sentei-me e abri o pacote de batatas, depois a lata de refrigerante.

Os minutos foram passando e nada de Anna aparecer. Onde será que aquela doida se enfiou?

Eram nesses momentos que sentia falta do meu celular. Se ele estivesse comigo já teria importunado aquela desmiolada.

Novamente voei naquela sensação estranha. Nas últimas semanas ela andava mais intensa. Ou então estou enlouquecendo. Se havia alguém me procurando, por que raios ele ou ela se esqueceu de mim? Mas por alguma razão bizarra eu sentia do fundo do meu coração, que quem quer que fosse não se esqueceria de mim. Não! De jeito nenhum! Ele ou ela era importante para mim e vice-versa. Nós estávamos ligados um ao outro, e um dia o destino nos uniria novamente. Foi apenas um desvio de percurso.

Estava tão distraída, que nem reparei que alguém chamava meu nome.

– Srta. Kilvert Dois? Olá? – Levantei a cabeça e vi o Sr. Coulson parado diante de mim. Só podia ser a figura. Ele era o único que me chamava de Srta. Kilvert Dois. Era o método utilizado por ele para diferenciar Anna de mim.

– Ah, oi! – Fiz menção de me levantar.

– Não precisa. O que faz aqui as...  – Ele olhou o relógio de pulso. – cinco da tarde?

– O quê? – Dei um berro e peguei seu braço esquerdo para ver as horas. Realmente eram cinco da tarde.

– À vontade. – Disse ele.

– Desculpa. Eu vou matar a Anna!

– Se quiser, eu posso te dar uma carona. – Ele apontou para um carro azul marinho.

– Não quero incomodar. – Disse sem graça.

– Não vai. – Ele indicou o carro para que o acompanhasse.

Peguei minha mochila.

– Tem certeza? – Perguntei enquanto o acompanhava.

– Tenho.

Ele deu a volta no carro e entrou. Depois de guardar suas pastas no banco de trás, abriu a porta para que eu entrasse.

– Para fechar a porta, bata com força. – Disse ele ao entrar. Obedeci é claro. – Este carro é meio temperamental, pra não dizer o que ele realmente é.

– Uma bosta? – Disse ao pegar o cinto de segurança.

– É. – Ele riu.

O Sr. Coulson levou uns três minutos para fazer o carro pegar. Mas é claro que antes ele soltou um monte de palavrões, seguido de várias desculpas.

– Sinto muito. – Disse ele ao seguir pela rua.

– Não tem problema. Foi até... Educativo. – Comecei a rir. – O senhor não é americano, é?

– Não. Na verdade, nasci no Canadá.

– Verdade? – Levantei a sobrancelha. – Porque o seu sotaque parece qualquer coisa, menos canadense.

– De onde acha que sou?

– Inglaterra.

– Por quê? – Ele riu.

– Pelo sotaque. Parece muito com o meu logo que vim morar aqui.

– Sério? – Ele riu outra vez.

– Sim.

– Curioso. Posso perguntar uma coisa? – Fiz que sim com a cabeça. – O que é que fazia na escola até tarde?

– Eu tinha uma reunião com a Srta. Weiss.

– Quem? – Ele parou no semáforo.

– Srta. Weiss, a orientadora. – Ele ainda estava perdido. – Uma loira que anda com uma bengala, embora não seja aleijada.

– Ah, ela! – Não sei por que, mas acho que o Sr. Coulson não morria de amores pela Srta. Weiss.

– Desculpa, o que tem contra ela?

– Nada. – Ele riu. – Você não perde uma, hein? Só não fui com a cara. Por acaso isso nunca aconteceu com você? Viu e não foi com a cara. – O semáforo abriu.

– Sim. Por que disse “Não perde uma”? – Não entendi a frase.

– Sou seu professor há umas três semanas e já notei que a senhorita é rápida no gatilho. Não deixa passar nada, até me lembra...  – Ele se calou e suspirou.

– Lembra? – Observava-o com curiosidade.

– Uma pessoa que conheci.

Silêncio.

– E?

– Nós... Meio que perdemos o contato. Segue reto? – Ele apontou a rua.

– Sim. Depois do posto de gasolina vire à direita. Vocês namoraram?

– Não! – Ele pareceu ultrajado. Como se tivesse perguntado algum sacrilégio.

– Então, o que aconteceu?

– A vida.

– Oh, profundo!

Ele começou a rir até ficar vermelho.

– Ela também costumava fazer piadas assim?

– Costumava? Ela morreu? – Arregalei os olhos.

– Não! Ela está viva. Está por aí.

– Por que não a procura?

– Melhor não. Fiz isso uma vez e me arrependei.

– Por quê? – Viramos à direita. – Agora segue reto até o final da rua. Então?

– Ah! Ela tinha mudado, na verdade, nós dois mudamos. Como disse antes, a vida aconteceu. Ela escolheu a dela e eu a minha.

– Acha que ela pensa em você?

– Não.

– Credo! Que mulher fria! – Ele riu.

Chegamos à minha casa e não havia nem sinal do carro de Anna. Apenas o da minha mãe estava estacionado diante da garagem.

– É essa casa branca. – Disse ao retirar o cinto de segurança.

O Sr. Coulson estacionou.

– Pronto! Está entregue.

– Obrigada. – Tentei abrir a porta do carro, mas não consegui. – Está emperrada.

– Vou dar a volta. – O Sr. Coulson desligou o motor, tirou o cinto e desceu.

Ao chegar ao lado da porta, eu já consegui abri-la, o problema é que ela se abriu com tudo e infelizmente, eu o atingi em cheio nos joelhos.

– Me desculpa. – Disse ao descer.

– Tudo bem. – Não parecia, pois o deixei mancando.

– Sinto muito. – Disse morrendo de vergonha.

– Não se preocupe. Você me atingiu nos joelhos, podia ter sido em outro lugar. Até amanhã.

– Até. – Fechei a porta e o carro ficou parado sem se mexer. Bati na janela, que se abriu alguns segundos depois.

– Quer que eu empurre?

– Acho que preciso jogar essa tralha no lixo. Essa bela... Bosta. – O Sr. Coulson deu um soco no volante e depois girou a chave com raiva. O motor ligou.

– Conseguiu!

– É! Desculpa pelas palavras.

– Não tem problema. Até amanhã.

O Sr. Coulson partiu e alguns segundos depois Anna chegou em casa. Logo que ela se aproximou, comecei a xingá-la.

– Que bonito. Me largou na escola! Onde você estava?

– Fui na casa do Fred ajudá-lo com a lição de Química.

– Foi ajudá-lo de verdade ou foi fazer uma prova oral? – Perguntei enquanto nos aproximávamos da porta.

– Credo, Hayley! Eu não faço isso!

Levantei a sobrancelha.

– Tá bom! Fiz isso uma vez e foi pra nunca mais fazer.

Entramos em casa e encontramos nossa mãe parada ao lado da janela da sala. Era difícil decifrar seu rosto. Parecia que ela estava satisfeita com algo, mas ao mesmo tempo com raiva. Quem será que vai dançar desta vez, eu ou Anna?

– Isso são horas de chegar? – Disse nossa mãe cuspindo fogo. – E ainda por cima esqueceu da sua irmã na escola! – Era a Anna que ia dançar. – Ela teve que pegar carona. Se bem que não deve ter sido ruim. – Nossa mãe sorriu de um jeito safado. – Hayley, quem era aquele... Pedaço de pecado ambulante?

Anna olhou para mim surpresa.

– Quem te trouxe?

Eu ia falar, mas nossa mãe se manifestou.

– Anna era um rapaz lindo, alto, cabelos escuros, bem vestido. Eu até tirei uma foto. – Anna correu até nossa mãe e pegou o celular. – Tinha que registrar. Milagres não acontecem todos os dias, não com a sua irmã.

Ao ver a foto, Anna deu um grito.

– Ele te trouxe? – Anna não parava de rir.

– Quem é o meu genro? – Perguntou nossa mãe.

Eu não sabia o que dizer. As palavras não saiam.

– O  nome dele é  Ryan. –  Disse Anna –  Ele  é... – “Isso vai feder”, pensei. – Estagiário da escola.

– Então, ele é mais velho? – De eufórica minha mãe ficou preocupada.

– Só um pouquinho. – Disse Anna. – Ele se forma esse ano na faculdade. Ele tem vinte anos, quase vinte e um.

– Isso mesmo! – O que você está fazendo? Cala essa boca. Como pode confabular com isso?

– Ainda  bem que Hayley completa dezoito em breve. Sabe, eu realmente gostei do rapaz. Ele tem uma... Presença.

Depois daquela conversa doida e mergulhada na mentira, fui tomar um banho. Lavei até meu cabelo.

Ao entrar no meu quarto, sou surpreendida por Anna, que estava escondida atrás da porta e quando me viu entrar a fechou.

– Me conta tudo!

– Contar o quê? – Fui até o guarda-roupa pegar meu pijama.

– Por que o Sr. Coulson te deu carona?

– Porque você esqueceu-se de mim.

– Hayley, só um cego para não ver que ele gosta de você.

– Bebeu? – Perguntei exaltada.

Joguei meu pijama sobre a cama.

– Qual é? Até parece que seria algo torturante? – Anna se sentou na cama. – Não me diga que não paga uma para ele?

– Olha, ele é lindo. Mas é... Doentio! – Bufei.

– OK. Quantos anos você dá pra ele?

– Sei lá! Vinte, vinte e um. Mas é claro que ele é mais velho, embora não aparente.

– Você tem uma vantagem. E como disse a mamãe, você vai completar dezoito.

Quando me aproximei da cama, Anna segurou meu braço.

– Não vai me dizer que nunca viu o jeito que ele te olha?

– Não! – E era verdade. – E nem quero! – Isso já era mentira.

– Mas se você pudesse, não gostaria de... Sabe?

– Ninguém merece. – Tudo bem que na primeira vez que o vi fiquei babando, mas agora a situação mudou.

– Responde!

– Sim. Se eu pudesse ficaria com ele. Satisfeita? – Vesti-me com raiva.

– Muito. Só mais uma pergunta... Como é que vocês se conheceram?

Tranquei a porta do quarto e contei tudo. Anna ficou maravilhada e revoltada, não por eu ter mostrado os seios, mas por não ter ficado mais tempo no banheiro para ver, como ela mesma disse “O pacote completo”.

Posso dizer que depois daquele interrogatório, Anna ficou satisfeita e me deixou sozinha com meus pensamentos, que sem querer iam parar em uma pessoa. Parece que minha irmã conseguiu plantar algo na minha mente e não era nada bom.
















Entorpecida (A Chave Mestra #1)Onde histórias criam vida. Descubra agora