Capítulo 8 - Livros e Música

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(Hayley)

Não sei para onde o Sr. Coulson estava me levando. Só sei que não era para minha casa ou para o hospital. Ele passou pela Catedral de Santa Helena, um dos pontos turísticos da nossa cidade e seguiu reto. Após passar por várias ruas estreitas, viramos à direita numa rua mais ampla. O Sr. Coulson não falava nada, apenas dirigia. Ele estacionou o carro diante de um casarão. Acredito que uma das primeiras casas construídas na cidade. Numa época em que a cidade era conhecida por seu ouro e prostituição é claro, mas isso é só um detalhe.

O Sr. Coulson desceu do carro e deu a volta.

– Precisa de ajuda? – Perguntou ao abrir a porta.

– Não. Dá pra sair. – Disse ao me levantar. – Que lugar é esse?

– Eu moro aqui. – Disse ele ao pegar um molho de chaves.

– Nessa mansão?

– Não sou o dono. Aluguei os quartos do andar de cima. – Disse ele enquanto me conduzia ao quintal da casa. Ele abriu a porta. – Só não faça barulho. A dona não gosta de ser perturbada. Por aqui. – Ele começou a subir as escadas que levavam ao andar superior. Paramos diante de uma porta de cor vermelha. Ele a abriu. – Pode entrar.

Não sei dizer o que eu esperava. Talvez uma casa com sala  de  jantar,  uma  sala  de  estar  bem  arrumada,  mas  o  que encontrei foi um sofá de três lugares, na cor preta, uma estante abarrotada de livros, uma TV velha e caixas e mais caixas espalhadas pelo chão.

– Não repare, me mudei faz pouco tempo e ainda não tive tempo de colocar tudo em ordem. – Disse ele ao fechar a porta. – Vou procurar algo para fazer um curativo.

Ele me deixou sozinha na sala e foi em direção a um corredor. Aproximei-me da estante e novamente me surpreendi. Pensei que encontraria apenas livros de biologia, mas não. Havia livros do Tolkien, Agatha Christie, Stephen King, C. S. Lewis e J. K. Rowling. Também havia os clássicos de mulherzinha. Razão e Sensibilidade, Persuasão, O Morro dos Ventos Uivantes e Jane Eyre. Continuei olhando e encontrei alguns livros do Dan Brown, Rick Riordan e Richelle Mead.

– Encontrei a caixa de primeiros socorros. – Disse ele ao voltar com uma caixa branca nos braços. – Quer que eu faça o curativo ou você faz?

– Eu faço. – Peguei a caixa. – Onde fica o banheiro?

– Siga pelo corredor e entre na segunda porta.

– Já volto. – Fui em direção ao corredor.

Entrei no banheiro e fechei a porta. Coloquei a caixa sobre o vaso sanitário e comecei a operação curativo. A parte mais difícil foi retirar todo o sangue seco. Depois de limpo veio a parte chata e desagradável, passar o antisséptico. Entre uma passada de gaze e outra, eu amaldiçoava o inventor desse remédio. Tudo limpo, desinfetado, hora de colocar gazes e cobrir. Seria mais fácil se não fosse o braço direito, e eu soubesse como usar o esquerdo. Sem outra alternativa fui pedir ajuda ao Sr. Coulson.

Ele me levou à cozinha e sentamos um de frente ao outro. Enquanto ele colocava as gazes, olhei o local. Nada demais, uma cozinha como qualquer outra. Só achei estranho ver uma foto em cima da bancada da pia. Na foto estavam o Sr. Coulson e uma moça loira. Ambos estavam sorridentes e abraçados. Depois de  olhar a  foto com mais atenção, vi que ela foi tirada no Rockefeller Center, diante da árvore de Natal. Estava prestes a abrir a boca, mas o Sr. Coulson começou a falar.

– Vi que estava admirando “Meus livros” – Disse ele enquanto enrolava uma faixa no meu braço.

– Por que usou aspas? – Perguntei confusa.

– Os únicos livros que realmente me pertencem são os da Série Harry Potter, Nárnia e do Stephen King. – Sem querer soltei uma gargalhada.

– Qual é a graça? Não posso ler esse tipo de livro?

– Não sei. – Não conseguia controlar o riso. – O senhor não é... Velho para ler Harry Potter e Nárnia?

– Claro que não! – Ele parecia ofendido. – Agora é preciso ser jovem para apreciar bons livros? E eu ainda nem cheguei aos trinta. E mesmo que já tivesse chegado, não deixaria de ler.

– Sério? – Perguntei surpresa. Sempre o achei novo, mas ele confirmar minhas suspeitas era diferente.

– É. Tenho vinte e sete. Quantos anos pensou que eu tinha?

– Sei lá. – Tentei desconversar.

– Agora fiquei curioso. – Disse ele ao prender a faixa com esparadrapo. – Quantos anos achou que eu tinha?

–  Vinte... Vinte e um – Respondi.

– Por que ninguém acredita que tenho vinte e sete? – Ele balançou a cabeça. – Todo mundo pensa que eu tenho vinte ou vinte e um. Pelo menos não foi tão ruim. Já teve uma aluna que disse que eu tinha quarenta.

– O que ela era? Míope? – Perguntei exaltada. – Não tem cara de velho. Tá com tudo em cima. – Mal terminei de falar e já me arrependi. – Desculpa. – Eu podia sentir meu rosto ficando vermelho.

– Você me mata de rir. – Disse ele aos risos. – Sente vergonha do que diz, mesmo sendo sua opinião mais sincera.

– Não se esqueça do que fiz quando te conheci. – Disse séria.

– O que é que você fez mesmo? – Ele se fez de desentendido. – Não lembro.

– Vou fingir que achei graça. – Olhei o relógio do microondas. Eram sete horas da noite. – Tô ferrada!

Levantei com tudo e fui em direção à sala.

– Preciso ir embora.

– Espera! Vou te dar uma carona. – Disse o Sr. Coulson ao pegar as chaves do carro. – Não quer ligar para os seus pais. Devem estar preocupados.

Balancei a cabeça.

– Não quero ouvir sermão pelo telefone. – Disse séria. – Só me dê a carona.

– Tudo bem. – Ele me acompanhou até a sala. – Não vai querer? – Ele apontou para a estante de livros.

– O quê? – Olhei confusa para ele.

– Um livro emprestado?

– Posso? – Aproximei-me novamente da estante. Se eu pudesse ver meu rosto no espelho, aposto que meus olhos estavam brilhando. Garotas normais surtam numa loja de sapatos, eu surto diante de uma livraria, ou no caso uma estante.

– Claro! É só escolher.

Fiquei admirando todos aqueles livros. Eu tinha uns vinte em casa, mas ali diante de mim havia o dobro, ou até mais.

– Vou levar esse aqui. – Peguei o primeiro livro da Série Vampire Academy e o Sr. Coulson começou a rir.

– Algum problema?

– Não. Só achei curioso.

– Como assim? – Franzi a testa.

– Leia e saberá. Vamos? – Ele indicou a porta.

Ao passar pelo quintal da casa, a dona apareceu na janela da sala. Ela tinha um olhar carregado de raiva.

– Ei? Ei, rapaz?

O Sr. Coulson se virou e a encarou.

– Pois não, Sra. Walters?

– O que eu disse sobre trazer garotas  à  minha  casa? – A voz dela era irritante.

– Que é proibido. – Respondeu o Sr. Coulson.

– Espero que se lembre da próxima vez. Se quiser namorar, faça num motel. – E a velha fechou a janela.

– Uau! – Comecei a rir. – Que doce de mulher!

– Ela é. Vamos? – O Sr. Coulson abriu a porta do carro.

Assim que ele deu a partida perguntei...

– Por que mora naquela casa?

– Como já disse, acabei de me mudar, e ainda não sei se vou continuar morando na cidade. – Disse ele sério.

– Não gosta daqui?

– Não sei o que dizer. Me mudei há apenas dois meses. – Ele abriu a porta luvas à procura de algo, até tirar um CD, que tinha uma mulher ruiva na capa encostada num espelho.

– Florence + The Machine? – Perguntei surpresa.

– Sim. Algo contra? – O Sr. Coulson sorriu.

– Isso não é banda que só mulher gosta?

O Sr. Coulson soltou uma gargalhada.

– Está insinuando o quê?

– Nada. – Já vi que falei besteira.

– Diga? – Ele me cutucou na cintura.

– Homens normais não escutam... Isso. – Apontei para o aparelho de som, que começava a tocar o CD. – Olha só. – Peguei os outros três CDs que estavam no porta-luvas. Tudo bem que um era do Goo Goo Dolls, mas os outros dois eram: Mais um do Florence + The Machine e Alanis Morissette.

– Muito bem. O que a senhorita recomenda? – O Sr. Coulson tinha um sorriso debochado.

– Goo Goo Dolls, OK. – Mostrei o CD. – Alanis Morissette, mais ou menos. Você poderia ouvir um pouco de... Foo Fighters ou Linkin Park.

– Eu escuto. – Disse ele ao entrar na avenida que levava ao meu bairro. – Sou um cara eclético, não gay.

– Eu não disse isso. – Cruzei os braços.

– Por que  não leva o CD e  escuta? Depois me diz o que achou. – Ele desligou o aparelho, pegou o CD e o guardou na caixinha. – Vai...  Pega!

Peguei o CD e o coloquei em cima do livro.

Nos próximos trinta minutos continuamos a falar sobre livros e recebi algumas dicas do que deveria ler e eu também dei algumas. O Sr. Coulson me passou um bloco de anotações que havia no porta-luvas e pediu para que eu escrevesse o nome dos livros que indiquei. Também aproveitei para escrever o nome de algumas bandas e suas músicas, caso ele quisesse baixá-las.

Ele virou à direita e entrou na rua de casa.

– Qual era a sua casa mesmo? – Perguntou ele ao diminuir a velocidade.

– É aquela pintada de branco. É só olhar para a varanda, vai ver que o lado direito é torto. – Disse ao tirar o cinto de segurança. – Mas pode parar aqui.

– Por que... – O Sr. Coulson parecia confuso. – Vai parar a cinco casas da sua?

– Não quero que meus pais fiquem bolados por chegar no carro de um estranho. – Imagina se a minha mãe o vê de novo. É capaz de ela convidá-lo para entrar e tomar um café. Não sei explicar, mas senti que o ofendi. O jeito que ele me olhou deu medo. – Desculpa. – Disse sem graça.

– Não. Tudo bem. Entendo a sua reação. Hoje em dia se um homem dez anos mais velho ajuda uma moça da sua idade, já é considerado tarado. Agora se ela já tem dezoito e o homem em questão trinta, já não é bizarro. Isso é tão... Deixa pra lá!

– Desculpa. – Disse mais uma vez. Cara! Eu não dou uma dentro. Se não é batendo ou xingando. É abrindo minha santa boca para falar besteira.

– Espero que goste do livro e do CD. – O Sr. Coulson se curvou para abrir a porta do carro. Só faltava ele me jogar para fora. – Boa noite, Srta. Kilvert.

Eu baixei minha cabeça e sai do carro. Nem ao menos desejei boa noite. Simplesmente me arrastei na minha vergonha até a calçada. Caminhei  lentamente  até  a  porta  de casa. Assim que a cruzei, meus pais e Anna vieram em minha direção.

– O que houve? – Perguntou minha mãe.

– Por onde andou? – Meu pai estava furioso.

– Gente, calma. – Disse ao levantar as mãos para acalmá-los. – Sofri alguns contra tempos.

Ao verem meu braço, mais perguntas foram feitas. Eu poderia ter dito a verdade. Contar sobre a perseguição no estacionamento da galeria e que o Sr. Coulson me ajudou, mas preferi minha versão Pinóquio dos fatos. Disse que ao sair da galeria quase fui atropelada por um carro e que acabei ralando o braço ao me jogar na calçada. Por sorte a dona da farmácia em frente à galeria cuido do machucado, e quando estava tudo em ordem peguei um ônibus para voltar.

– Como era o carro? – Perguntou meu pai.

– Sei lá! Preto e correndo a toda velocidade. – Suspirei. – Qual é pai? Eu estava mais preocupada em sair do caminho do que admirá-lo.

– Tudo bem. – Parece que meu pai começou a se tranquilizar. – Mas devia ter telefonado.

– Como? Esqueceu que meu celular foi confiscado?

– Hayley... Você é uma menina inteligente, mas às vezes é tão... Tapada. Com o perdão da palavra. – Disse meu pai sério. – Nunca ouviu falar de telefone público?

Queria discutir. Mostrar meu ponto de vista, mas a única coisa que iria conseguir era mais uma semana de castigo.

– Será que posso subir e tomar um banho? – Perguntei. – Porque depois do jantar, quero começar a ler este livro e também ouvir este CD. – Mostrei minhas aquisições. Papai tentou protestar, mas o fiz se lembrar do acordo. – O senhor disse que assim que eu fizesse a prova de “O Morro dos Ventos Uivantes”, poderia voltar a ler o que quisesse.

– Sobre o que é? – Meu pai o puxou da minha mão. – Quem é Alexis?

– O quê? – Aproximei-me e olhei para o livro. “Droga”, resmunguei em pensamento. O  livro tinha  uma dedicatória  por dentro.


Alexis, mais um livro para a sua coleção. Ou seria nossa? Você merece não só livros, mas muito mais. Te amo, querida!


– Alexis é uma moça do último ano. Ela me emprestou o livro. – Agora até eu me surpreendi. Inventei uma mentira em menos de um minuto.

Meu pai devolveu o livro e fui em direção ao andar de cima. Enquanto subia as escadas reli a dedicatória. Quem seria Alexis? Será que era uma namorada? Ou era a garota com quem ele perdeu contato? E por que o livro estava com ele?

(O Lobo)


Havia um cheiro inebriante no ar. Eu o segui maravilhado com a possibilidade do que encontraria. Ao mesmo tempo em que sentia a adrenalina percorrer meu corpo, sentia a dor da culpa. Sabia que aquilo era errado, mas não conseguia resistir. Era mais forte do que eu.

Não devia ter voltado para casa com raiva e derrubado todas as coisas no chão. Se não tivesse feito aquilo, agora estaria em minha casa, deitado na cama, contemplando a lua e não deixando que ela me dominasse.

Caminhei até um carro de cor cinza. Lá dentro havia um casal de namorados. E estavam bem ocupados. O carro estava com os vidros embaçados e de vez em quando se chacoalhava de um jeito, que chegava a ser cômico.

Sentei-me ao lado da porta e aspirei o ar. Meu coração disparou. Agora só precisava decidir quem iria primeiro. O rapaz ou a moça.

Apesar da minha nova forma, fui camarada. Esperei o casal acabar o serviço e aí eu começaria o meu. Estava prestes a pular no capo  do  carro, quando senti algo me atingir nas costas.

Virei e olhei. Mesmo distante pude reconhecer que era uma garota de pele clara, com o aspecto tão macio e delicado, que  chegava a me convidar a enfiar meus dentes. Ela tinha os cabelos ruivos na altura dos ombros e usava um pijama de flanela na cor creme.

Voltei minha atenção ao casal, e novamente fui atingido por algo. Olhei para a garota de pijama. A pestinha tinha um punhado de pedrinhas na mão.

“Muito bem, se quer se oferecer para o jantar. Agradeço”, pensei.

Quando viu que iria caçá-la, ela começou a correr. Corremos por cinco quarteirões até pararmos num parquinho.

Ela me observava com medo, mas mesmo assim, se ajoelhou diante de uma caixa de papelão e fez sinal para que eu me aproximasse. Dei alguns passos, pronto para atacá-la, então ela abriu a caixa e retirou um pombo.

Sentei-me e a observei. Só pode ser brincadeira. Ela queria que eu comesse um pombo. Sei que pela carta que minha mãe deixou, se não conseguisse controlar meus desejos poderia recorrer a animais de pequeno porte.

Muito contrariado aceitei o pombo. Por sorte havia na caixa três deles. Não foi o suficiente, mas me ajudou a pensar com mais clareza.

A garota por outro lado parecia sentir frio, e tinha um olhar perdido, como se estivesse em transe. Então ela sorriu para mim, esticou a mão tentando me tocar e do nada desmaiou.

Aproximei-me e olhei melhor para seu rosto. Não podia acreditar no que via. Era ela. Mas o que fazia aqui? E como sabia o que eu era?

Pensei em ficar, mas a presença de algo maligno me afastou. Algo ruim estava para acontecer.

(Hayley)


Estava  no meu  nono  sono, quando ouvi um grito. E não era um grito por medo de barata. Era como se a pessoa estivesse vendo o capeta em carne e osso.

Acordei num pulo, só para perceber que mais uma vez dormi fora de casa. Desta vez acordei embaixo de um balanço. Conhecia o lugar. Meu pai costumava nos levar até esse pequeno parque há cinco quadras de casa. Levantei-me. Ainda não tinha amanhecido. Talvez fossem umas quatro da manhã. Comecei a limpar minha roupa. Ao passar a mão pela minha calça, vi uma mancha vermelha. Toquei-a e percebi que ainda estava úmida. Cheirei minha mão para ver o que era, e quase cai sentada no chão. Era sangue. Esse cheiro de ferrugem era inconfundível. Parei um pouco para colocar meus pensamentos em ordem. Não estava menstruada, até porque nunca vi uma mulher menstruar pela cintura, e pelos meus cálculos, não era nem para eu estar. Aquele sangue não era meu. Dei alguns passos para frente e encontrei o cadáver de um pássaro, quer dizer, o que sobrou do bicho. Meu Deus! Será que eu comi um pássaro vivo? Ainda bem que não era um morcego, se não diriam que virei fã do Ozzy.

Tirei os restos do bicho e da grama do meu corpo e voltei para casa. Durante todo o trajeto pensava que esses meus passeios noturnos estavam a cada dia mais bizarros. Tipo, ser sonâmbula não era o problema, o problema na verdade era o crescimento do meu cabelo, que agora cresceu mais uns cinco centímetros, e agora para aumentar a loucura, minha prática em comer animais vivos.

Ao chegar à porta de casa fiquei na dúvida se entrava. Com certeza a porta estava trancada, mas como diz o ditado “A esperança é a última que morre”. Toquei na maçaneta e a girei. Quase dei um grito ao ver a porta se abrir. Entrei rapidamente, tranquei-a e subi as escadas com cuidado. A última coisa que precisava era dar de cara com meus pais. Abri devagar a porta do meu quarto. Ao por a ponta do pé do lado de dentro, senti alguém agarrar a blusa do meu pijama e me puxar para dentro.

– Onde você estava? – Se não fosse de madrugada, Anna estaria aos berros. – Acordei para ir ao banheiro e decidi dar uma olhada em você. E para a minha surpresa encontro a sua cama vazia, de novo! – Ela fez questão de enfatizar o “de novo” – E isso é sangue? – Ela pegou a cintura da minha calça.

– Acho que sim. – Disse sem graça. – Acho que jantei um pombo.

– Como assim? – Anna se sentou com tudo na cama.

– Eu acordei naquele parquinho que o papai levava a gente e ao meu lado havia um pássaro morto. – Comecei a tirar meu pijama. – Pela penugem parecia um pombo. – Tirei todo o pijama e peguei minha toalha. – Vou tomar um banho e depois conversamos.

Infelizmente não pudemos retornar nossa conversa, pelo menos, não nos próximos cinquenta minutos. Papai e mamãe como sempre estavam falantes. Anna às vezes os acompanhava, mas eu fiquei calada. Só voltei a falar quando eu e Anna estávamos sozinhas no carro, em direção à escola.

– Sabe, vou fazer uma pesquisa. – Disse Anna. – Isso que está acontecendo com você não é normal. Deve ter um motivo. Não anda usando nada ilegal, não é? E pode contar, não vou falar para os nossos pais.

– Na verdade, tem algo que quero contar. – Talvez todos os meus problemas sejam causados porque não sou honesta. E para dizer a verdade, eu ando escondendo diversos sentimentos dentro de mim, e o melhor seria confessá-los todos à minha irmã, quer dizer, quase todos. Não estava disposta a confessar um. Afinal, era besteira e eu tinha que apagá-lo e enterrá-lo no lugar mais fundo e escuro do meu cérebro e do meu coração peludo.

– Eu menti sobre o atropelamento. – Disse séria.

– Não me diga que bateu em alguém? – Paramos no semáforo.

– Não. Fui caçada no estacionamento da galeria por três caras vestidos de preto e em motos.

– Por quê? – O sinal abriu.

– É o que eu gostaria de saber.

– E como escapou?

– O Sr. Coulson meio que me salvou.

– O professor? – Anna arregalou os olhos.

– E que outro Sr. Coulson você conhece?

Anna deu um risinho sem vergonha. “Lá vem!”, pensei.

– Posso perguntar uma coisa?

– Se eu disser não... Vai adiantar?

– Não. – Anna sorriu. – Enfim, você tá a fim dele, não é?

– Bem...  – “Responde alguma coisa”, pensei.

– Eu sabia! Desde o dia que ele te levou para casa, que ando notando mais e mais o jeito que ele te olha. E vice-versa. Só um cego para não ver.

“Ou alguém com a mente muito poluída”, pensei.

Anna segurou o volante com uma mão e com a outra tocou meu joelho.

– Se eu fosse você ficava na minha. Esperava o dia 21 de Junho chegar e depois esperava o mês de setembro.

– Não entendi. – Franzi a testa.

Anna revirou os olhos.

– O papai tem razão. Às vezes você é tapada. O que acontece no dia 21 de Junho?

– Meu aniversário. – Não era bem meu aniversário, era o dia em que meus pais conseguiram os papeis definitivos da adoção. E sim, entendi o que Anna quis dizer. Deixarei de ter dezessete para ter dezoito. – E por que esperar até setembro?

Anna deu uma curva para pegar a rua da escola.

– Corre a boca pequena que o Sr. Coulson vai pedir demissão. Agora junte um mais um. – Anna olhou para mim. – Nossa que cara mais feia. Achei que ia dar pulos de alegria.

– Não tem o que comemorar. Mesmo que... Sabe? Os nossos pais nunca irão aceitar. Ele é dez anos mais velho.

– E daí? – Anna falou com a maior tranquilidade. – Por acaso você vai ficar adolescente para sempre? Olha só os nossos pais.  A  mamãe  tem quarenta e três e o papai cinquenta e cinco. Parece um escândalo?

– Não.

– Então com você também não será. E o Sr. Coulson tem a vantagem de aparentar jovem. Se ele é dez anos mais velho, então ele tem vinte e sete, e olha que eu daria vinte pra ele fácil, fácil. Parece que o cara dormiu no formol. Vai ver que aquilo que ele bebe é formol.

Eu e Anna começamos a rir, mas ao virar à direita para entrar no estacionamento, um van de reportagem do Canal KRZ passou por nós em alta velocidade.

– Ah, meu Deus! – Dissemos nós duas ao mesmo tempo.

– Quem pulou desta vez? – Perguntou Anna.

Em menos de um minuto Anna encontrou uma vaga. Saímos do carro e fomos ao encontro de Karen, que estava encostada num poste.

– O que aconteceu? – Perguntou Anna ao equilibrar as apostilas e o fichário.

– Gente... Kelly foi encontrada em casa... Morta!

– O quê? – Gritamos juntas.

– Isso mesmo. Dizem que ela foi retalhada. Se ela estivesse fora de casa poderiam dizer que foi um urso ou lobo. Mas foi no próprio quarto da coitada. Dizem que está o maior circo naquele parquinho do bairro de vocês.

– Por quê? – Senti minhas pernas tremerem.

– Ah! Kelly mora de frente ao parquinho.

Entorpecida (A Chave Mestra #1)Onde histórias criam vida. Descubra agora