QUIMERA

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Enquanto atravessávamos a ponte sobre o Canoas ouvi zumbidos variados vindos das bandas do norte. Os amigos disseram que eu estava emocionado com o passeio e com a presença de Sofia – todo mundo riu – ali, à mão, numa barraca só dela e sozinha. Ela riu também.

Mãos soltas ao vento a modos de despedida à noite, as estrelas eram fugidias e as mesmas mãos tremiam com certo frio. Acendemos fogueira. Dormimos de cansado, cada um em sua barraca e nada mais. No entanto, pela manhã, Dario e Carmelita disseram que ouviram assobios, também. Dessa vez nada escutei. Pregado de sono que estava desfiz da conversa e fui tomar meu café com laranja. Logo seguimos caminho e Sofia me veio dar a mão. Mãos entrelaçadas. Passeio e calma.

Quatro horas depois, já em Minas, terras propícias para acontecimentos misteriosos, místicos e mentirosos, como estes, um fabuloso monstro com cabeça de leão, torso de cabra e cauda de dragão, estacava à nossa frente, num frenesi tamanho, soltando fogo pela boca. À primeira vista não acreditei no que via pois aquilo nunca existiu. Nenhum de nós achou, por bem, que aquilo fosse de verdade. O profeta, misto de profanador e poeta, Getúlio Cardozo disse, um dia, que se visse fantasma na frente dele, assim mesmo, não acreditaria, ou melhor, acreditaria estar louco.

Nós ali sabíamos que não estávamos loucos, portanto, o que víamos era quimera pura. E era mesmo.

Um dos nossos amigos, ginecologista, raramente ficava conosco até o fim das viagens e dos grandes passeios pelos campos, com ou sem garotas por perto. Era-nos preconceituosamente suspeito. Naqueles dias esteve conosco e não arredou pé. Armou-se de papeis e gravadores e uma grande matulagem para viagens longas se necessário. Durante as pausas para alimentação ou passeios por grotas rudes ele esteve atento a qualquer ruído, inda mais depois das aparições e desaparições, que eram fenômenos constantes no sul de Minas Gerais; e agora a coisa do leão à nossa frente. Um dia, com pena, fui ter com ele, perguntei se ele não via como evitar essa coisa de relações homossexuais e ele mandou que eu calasse a boca e me atinasse com o fenômeno. Ele não se cansava. Respondeu, depois, que poderíamos conversar com mais detalhes mas que por ora se interessava pela Quimera e nada mais. Entendia que nossa atividade rotineira era como um trabalho de permanente observação e cuidado; ficar sentado filmando com celular era muito fácil mas entender a fundo o acontecimento... o deixava emocionado a ponto de chorar (sic)...

Lembrei de que uns dois meses atrás eu o vira na avenida principal, sentado numa das cadeiras de mogno do restaurante Fogo na Brasa; esperava, certamente, pelo cardápio que já demorava; gesticulava para o garçom; desembrulhava guardanapos e observava os talheres; limpava-os, até. Saindo dali foi submeter-se à manicure, acredito; para ele, não havia nada mais encantador do que as unhas bem esmaltadas com a transparência, outra vez, do nácar. Essa palavra, nácar, não mês ai da boca quando falo de gregos e similares. Achei muito razoável pois todos nós sabíamos de suas preferências – em suspeita respeitosa e preconceituosa, como já disse e como sói acontecer a todos – e ouvimos, enfim, no final do dia, a sua ideia de captura daquele monstro. Isso nos espantou tamanha a macheza do empreendimento.

Hoje cedinho, com a primeira pontada de inquietação com o início de uma nova semana, ainda meditando no travesseiro, avancei mais um pouco nas caraminholas. Pois já havia ligado a segunda-feira com o primeiro dia de aula no passado longínquo, quando a criança deixa de ser apenas "filha" e passa a integrar uma sociedade maior, iniciando-se inocentemente naquele lento esforço de socialização "oficial". O peso do trabalho vem da responsabilidade profissional. Não é "ser como cozinheira", mas "ser cozinheira" e ganhar salário, pagar INSS e IR, ter direitos e deveres como cidadã através da culinária, por exemplo. A imagem do trabalho que recebi daquele dedicado amigo não estava correta porque não trazia este primeiro travo dolorido ligado a reinserção num determinado nível da vida social. Usar pijama e chinelo é cômodo para aposentados dos cartuns não tanto pelo conforto da indumentária, mas pela sinalização do estado de "indisponibilidade , ou isenção das responsabilidades profissionais" marcadas pelo salário e pelos impostos. É viajar grátis de ônibus, pagar meia no cinema como criança...

Um enorme preâmbulo para comentar os filmes de um diretor que encantou Humberto e que acho doloroso demais assistir, embora se apresente como uma comédia. Trata-se de um português chamado João César Monteiro. As três fitas que ele mandou vir da Europa são premiadas: Recordações da Casa Amarela, Leão de Prata no Festival de Veneza de 1989; A Comédia de Deus, Grande Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza de 1995; As Bodas de Deus, Seleção Oficial do Festival de Cannes em 1988.

Já havia tentado ver As Bodas de Deus, com uma cena em que João manipula uma mulher que nada sobre a mesa de massagem, tendo Wagner (a morte de Isolda) ao fundo. Ontem vi partes das Recordações da Casa Amarela. Estes filmes são, pra mim, manhãs de segunda-feira esticadas ao infinito. A fotografia é principesca. A luz é de Fra Angelico. As casas lembram os casarios do bairro do centro de Mococa onde me davam suspiros recém saídos das palmeiras imperiais enquanto escutava os tesourinhas e melros.

Ia eu nesses pensamentos perdidos olhando o sol coado pela tenda quando ouvi gritos lá fora. Sai e pude notar a algazarra. De qualquer forma o bicho avançou e retrocedeu sem que saíssemos de nosso lugar. Nisso, tamanha poeira levantada, outra aparição nos fez tremer na base. Um cavaleiro sobre um cavalo que voava. Belerofonte, montado no cavalo alado Pégaso dado por Atena. Ataca o bicho que cuja representação plástica, na arte cristã medieval, era um símbolo do mal, mas com o passar do tempo, passou a se chamar de quimera. Hoje quimera significa produto da imaginação, fantasia, utopia, sonho, e, eu ainda não sei porque não fujo pois o monstro acaba de devorar os braços de Sofia e ruma para abocanhar a cabeça do médico que corria como uma gazela.

MITOLOGIA PELO MÉTODO CONFUSOOnde histórias criam vida. Descubra agora