PÃ, O DEUS DE TODOS

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Bosques, campos, caçadores a pés descalços, pastores de frauta ruda à boca, rebanhos dormentes de acasalamentos.

'Deusinho tudo', caráter pagão em quem se adora a natureza. Terá sido filho de Zeus? Dizem as más línguas que Zeus pegou sua ama de leite e daí nasceu Pã. Outras línguas dizem que nasceu Nelson. Zeus e a cabra. Zeus e Amalteia. Zeus é o deus dos caipiras que pegam suas vacas encostando a bicha no barranco, pelo visto. Vacas ou cabras, depende de caipira e da altura do barranco.

Tudo isso me disseram enquanto caminhava absorto com um grupo de milicianos, atravessando o Rubicão. Eram meses frios. Muito agasalho. Os pés gelavam na estrada de pedra e as costas de Cesar não saiam da minha frente. Eu tinha a responsabilidade de segurar o general caso caísse, vítima de outro ataque epilético. Não podia perder a atenção ou perdia a cabeça. Por isso, quem contava essa historia de Pã bem que podia aumentar à vontade e mentir a valer que eu não perceberia. Outros aproveitavam para palpitar sobre a mesma coisa. Lendas... Pã como filho de Hermes... Pã como filho do Ar...

- ... e de uma nereida -, gritou outro centurião lá do fundo. Voltei meu rosto e vi Quintilius rindo, escondendo o rosto de puro deboche no casaco de peles. Balançava a cabeça.

- ... ou, filho da Terra e do Céu -. Alguém disse, mas nem me dei conta. Naquele momento atravessávamos grutas e vales e montanhas. Quintilius gritou.

- Olhem lá pra baixo... ninfas. As ninfas estão dançando.

Dez ou vinte soldados viraram o rosto e nada viram. Ninfas não existem. Quintilius ria. Percebi que a cabeça de Cesar virou para a direita e atentei a seus movimentos. Acho que ele ria, também. Levantou o braço e a fileira parou. Cesar desceu do cavalo e mandou montar a barraca. Descansaríamos. Quintilius se aproximou de mim.

- ... caçando ou dançando com as ninfas. Vamos lá, Antonius... a viagem está no fim... Mais uns três dias?

- Talvez -, respondi.

- Então!... depois é só ninfa e dança, meu velho.

- Já estou cansado, mesmo - dizia eu enquanto desatrelava o cavalo. Barulho e movimento nas terras geladas tomavam corpo no acampamento. Os soldados temerosos se escondiam em suas barracas unitárias enquanto outros formavam círculos para esquentar ao fogo e contar histórias. Quintilius e seu grupo não paravam de rir nem de resgatar lendas e causos sobre Pã.

- Contam, as ciganas, aquelas mentirosas... que seu grande amor foi Selene.

- Eu também me apaixonei pela Lua... e daí?

- Vai ver você é primo de Pã - gritou outro e todos gargalharam.

- Mas interessam mais os muitos outros amores... e que entre os muitos amores de Pã, nada vale mais do que os que teve com as ninfas Pítis e Eco...

- Ei, Quintilius... Cesar ainda te prende... você sabe mais de coisas da Hellas do que de Roma...

Quintilius abanou a mão pedindo silêncio: - Nada disso... a coisa é grave..., deixa que eu conte. Pítis e Eco, ao abandonarem Pã... foram transformadas em pinheiro, a primeira, e em uma voz condenada a repetir as últimas palavras que ouvia, a segunda.

- Pã, além de tudo, é mágico.

- Sim... - disse Quintilius. – Mágico e mal.

Nisso Cesar saiu de sua tenda magnífica e caminhou na direção do grupo. Fizemos silêncio respeitoso.

- Nós o estamos incomodando, Cesar? – no campo de batalha Cesar não usava de protocolos nem burocracias. Era direto com todos e todos eram diretos com ele.

- Não... vim para ouvir de perto os teus relatos... Depois, a noite está fria e... – sorrindo – acho que ouvi a flauta de Pã tocando naquela mata. Antes que escureça é bom estar ao lado dos amigos.

Os soldados baixaram a cabeça.

- Posso dizer alguma coisa?

- Por favor, General.

- Pã deve ser temido por todos os que necessitam atravessar as florestas... assim como nós... à noite,... justamente como nós fazemos agora... pois as trevas e a solidão da travessia predispõe a pavores súbitos... -, as brisas com aroma de eucalipto passaram pelo grupo que se ia aumentando, colorindo a história de Cesar com característico aroma. Ele continuou com sua voz grave:

- Os sons e os medos sem qualquer causa aparente são atribuídos a Pã... E por força de tudo eu quero que meus soldados se transformem na contrapartida desse deusinho das florestas... Cada soldado meu tem que ser um deus aparte... talvez sem nome... ou com o nome romano de Quintilius... ou de Antonius... novos deuses que instilem o medo e o respeito por onde passarmos... Não seremos nós a ter medo de um deus que mostra orelhas, chifres, cauda e pernas de bode... -. Todos riram imersos na confiança de Cesar... - Não é?

De longe eu vi que um par de olhos flamejantes nos observava através da mata. Hesitei em passar por bobo na frente de Cesar e nada comentei. Permaneci em estado de alerta. Cesar deu boa noite e foi para a tenda. Os soldados se separam e, como amante da música, pude apurar o ouvido... o som fluía da floresta... alguém ali estava... pedi que batedores fizessem a ronda e os olhos que me pareciam flamejantes mudaram de lugar rapidamente... Seriam vaga lumes? Voando aos pares? Vermelhos?

A noite se fez densa e Cesar ordenou que eu fizesse o primeiro turno de guarda, mais curto, para que dormisse adequadamente... Antes de entrar na tenda relancei o olhar e vi uma pessoa que carregava uma flauta... parecia um flauta de caniço... o caniço em que se havia transformado a ninfa Siringe.

Chegamos a Roma na tarde do dia seguinte e nada mais aconteceu nem Quintilius falou coisa nenhuma. Na verdade ele sumira... disseram que perdido na floresta. Eram calendas de fevereiro, metade do mês passara e logo teria início a festa das Lupercais... Lupercius, o deus dos pastores. O festival, celebrado no aniversário da fundação de seu templo; a Lupercália, prometia muita comida, bebida e festejos orgiásticos.

De cima do palco o apresentador gritava: - Toda criança que nascer nesses dias deve receber o nome de Lupercius, ou Silvano... – e pulou de lá, soprando um pequeno aulo, coberto de pele e ria muito olhando para mim enquanto se afastava para a floresta,  perdendo-se na multidão.

MITOLOGIA PELO MÉTODO CONFUSOOnde histórias criam vida. Descubra agora