Sobremesa

355 41 20
                                    

"Na praça tinha um cachorro.

Um rottweiler.

Ele havia fugido da casa de um senhor de idade. Era um daqueles que não está acostumado a ver pessoas diferentes, logo, já era de se esperar que fizesse um estrago mediante a qualquer situação diferente ao que estava habituado.

Uma criança corre para os braços da mãe e, para ele, é a isca perfeita. A mãe desesperada com a cena, joga a criança no chão e se joga por cima na mera tentativa de defender o fruto do seu amor. Cachorros são seres irracionais, eles não ligam se estão machucando ou não; e aquele, especificamente, viu uma criança correndo e quis pegá-la; mas seres humanos não, eles são completamente racionais. Ou pelo menos deveriam ser.

Não me impressionei com a postura de todos. A primeira coisa que fizeram, mediante a cena de uma mãe sendo atacada por um cachorro para defender a filha, foi montar uma roda envolta delas; muitos gritavam, falsamente desesperados. Digo isso porque qualquer um realmente desesperado tomaria uma atitude. Em situações de risco, nosso corpo praticamente ganha super poderes: mesmo que por um curto período, nossos músculos são capazes de se contrair todos de uma vez, gerando uma força incomum e, com endorfina, é possível não sentir dor, e os ossos modificam sua estrutura para suportar grandes pressões; com a adrenalina no corpo, o sangue circula com mais facilidade e intensidade, levando mais oxigênio aos músculos, que passam a trabalhar mais contraídos. Mas a verdade é que, ali, ninguém se importava o suficiente para tomar uma atitude real.

Alguns choraram; outros tacaram água; alguns, ainda chegaram um pouco mais perto e bateram no cachorro com pedaços de pau, sem se tocar que aquilo só o deixava com mais raiva.

Sobre tudo isso, ninguém foi capaz de realmente se aproximar, ninguém foi capaz de se arriscar. "Todos importam-se". Importam-se somente até o ponto em que não lhes atingia. Ninguém se colocaria na reta para ajudar aquela mãe com a criança. Todas aquelas pessoas que estavam ali e quiseram passar uma preocupação, mas não agiram, na verdade só demonstravam indiferença.

Eu estava lá, eu assisti a tudo. Mais uma vez, a chefe de cozinha, a mulher estressada do restaurante, me surpreendeu. Era ela quem estava jogada naquele chão tentando defender a filha com a sua vida. Ela sim agiu e se arriscou pela criança, porque ela realmente se importava com a filha. E eu também. Importei-me tanto que agi; e agora, os furos nas minhas mãos, causados pelos dentes do cachorro me atrapalham a escrever, entretanto me lembram de mais uma lição que ela me ensinou: um sentimento, sem uma ação, se torna vazio."



Camila não me ligou. Nem mandou mensagens. Eu, no fundo, entendia que ela era aquele tipo de pessoa mais fechada e desconfiada, entendia e conseguia enxergar nos seus olhos que ela se sentia sozinha e que não tinha certeza se deveria confiar nas pessoas ou não. Contudo, ainda sim, achava ela um pouco resistente demais. Sorri sozinho com a imagem perfeitamente formada que eu conseguia ter dela. Camila Cabello era como o universo e eu era como uma bebê que acaba de nascer e ainda tem tanto para aprender.

Sentada no chão da sala, passando as mãos pelos pelos de Granola, que estava deitada com a cabeça em minha perna, eu me questionava se deveria ou não seguir meus instintos e ir visitá-la agora que, finalmente, sabia onde ele morava. Eu tinha um álibi perfeito: preocupação com os ferimentos e machucados das duas. E era um álibi real. Estava realmente preocupada com a cena que havia visto dela carregando a filha mesmo estando com dor nos pontos. Entendo que Francesca é uma criança e que havia passado por um baita susto, mas algo em mim dizia que Camila é daquelas mães que fazem o possível e o impossível, logo, tornaria a pegar a criança no colo.

Lista de desaparecidosOnde histórias criam vida. Descubra agora