"Nem tudo o que você ouve deveria soar como verdade, porque as palavras de ninguém podem te definir." — Got it in you // BANNERS
Alguns meses depois do velório
A tarde estava cinzenta, mas muito abafada. O calor era insuportável e eu duvidaria de qualquer pessoa que me dissesse que aquilo no céu eram nuvens de chuva e não de fumaça. De qualquer forma, era mais um dia chato e cinza onde eu tinha que levantar para viver.
Quando acordei na manhã daquele dia minha tia havia perguntado se eu estava animada para o meu último ano na escola e eu respondi apenas com um dar de ombros. Eu só queria poder dizer que a idéia de ser atropelada por um carro me animava mais do quê a de pisar no chão daquela escola, mas não disse nada.
karla se esforçava muito para cuidar de mim e de minha irmã menor. Isso era inegável, claro, mas suas tentativas nem sempre tinham sucesso. Desde que nossos pais haviam, literalmente, nos abandonado, ela cuidava de nós como se fôssemos as filhas que ela nunca teve, porém ainda faltava muito para que a considerássemos uma verdadeira mãe.
Naquele dia, quando cheguei na escola, encontrei vários rostos conhecidos, até mesmo de pessoas que já haviam sido bons amigos, entretanto, agora, nem falavam comigo como se não me conhecessem.
Ignorei todos eles e segui para a sala da tortura. Era uma maldita aula de cálculo. Eu nunca fui boa com números, por isso entrei na sala praticamente me arrastando. A última aula era de biologia. Devo admitir que também não gosto de biologia, pra mim chegava a ser pior que cálculo.
O professor, um velho meio louco e barbudo, decidiu passar um trabalho na primeira aula do ano. Depois ainda nos perguntavam porque o odiavámos tanto. Que tipo de professor passa um trabalho no primeiro dia de aula? O pior é que era um trabalho em dupla. Com quem eu faria o trabalho? Eu não queria me juntar com ninguém. Lembrava dos livros que havia lido quando era mais nova onde a garota conhecia alguém através de um trabalho, começavam uma amizade e depois um romance e blá blá blá. Não ia rolar. Pois bem, mesmo eu insistindo para fazer o maldito trabalho sozinha, o meu adorável professor me fez fazer dupla com uma garota. Cassandra, era o nome dela. Uma garota loira de olhos castanhos quase tão claros quanto os meus. Era uma aluna nova. Eu ainda não a conhecia.
— Prazer, Enya! — A voz dela me deu ânsia de vômito.
Sim, estou exagerando? Mas quem nunca, não é?
Eu estava cansada de gente falsa e embora não conhecesse aquela menina ainda eu podia apostar que ela era só mais uma idiota como todas as outras da minha escola. Ignorei-a o máximo que pude até o fim da aula, mas infelizmente o trabalho teria que ser terminado em casa, e eu preferia mil vezes me afogar no vaso sanitário se ele me coubesse, juro que prefiria. Tudo menos levar aquela garota para minha casa, então combinamos que eu iria na casa dela mais tarde.
Depois das aulas eu fui diretamente para uma lanchonete comer alguma coisa. Não queria voltar para casa tão cedo onde até as paredes me lembrariam do quão fracassada eu era.
Sentei-me sozinha. Alguns alunos da minha escola também foram comer na mesma lanchonete, porém ignoraram a minha presença e sentaram-se sozinhos também. Longe de mim. Engraçado como pessoas que diziam ser meus amigos no passado agora fingiam que eu não existia... Então eu me submeti a passar mais um dia sozinha. Ninguém queria ficar perto de uma depressiva e, sinceramente, também não queria ficar perto deles. Eu os olhava de longe. Suas ações. Suas conversas sobre festas, drogas e sexo. As piadas que hoje eu já não achava mais engraçadas... É, eu nunca mais me encaixaria naquilo.
Comi rapidamente, embora não sentisse o gosto da comida direito, e saí dali. Enquanto eu andava pelas ruas sozinha, sentia vontade de fazer alguma coisa grandiosa ou simplesmente não fazer nada e só parar com tudo. Parar com a vida. Não sei ao certo explicar a sensação. Era como se eu estivesse presa no escuro e no frio, mas, por mais que eu estivesse com medo, sabia que sair dali iria me afetar muito mais.
Quando, depois de andar por um bom tempo, cheguei finalmente em casa, minha irmã, Eva, estava brincando com o filho menor do vizinho. Eu parei no portão e fiquei observando-os enquanto minha memória voltava ao passado onde eu era uma criança como eles. Fiquei a me perguntar onde fora que eu havia deixado de ser aquela criança que minha mente recordava agora. Senti uma angústia terrível em meu peito e quis chorar. Mas isso não era novidade. Eu passava a maior parte do meu tempo querendo chorar. As lágrimas não eram frequentes, mas a angústia sim, ela era frequente, me pertubava diariamente e me fazia lembrar de um passado que eu queria esquecer. Eu estava em um eterno luto. Um luto que estava me matando aos poucos.
— Enya! — A voz de minha tia me trouxe e volta para a realidade. Olhei para ela ainda meio perdida em meus pensamentos e a contemplei me esperando na porta de nossa casa. Ela me olhava com dó e eu sabia que minha cara não estava agradável.
— Oi, tia — respondi, sentindo a angústia crescer em meu peito.
— Como foi seu primeiro dia de aula, querida? — perguntou, quando cheguei perto dela. Ela tocou em meus cabelos e os alisou com as mãos delicadamente.
— Cansativo, Karla! Muito cansativo...
— Vá descansar, filha...
Assenti e entrei, subindo as escadas logo em seguida para o meu quarto. Fechei a porta atrás de mim para que Eva não me incomodasse e deitei em minha cama, enquanto as tão esperadas lágrimas começavam a cair dos meus olhos.
— Sinto sua falta, Heitor — sussurrei e pude sentir uma pequena parte do meu coração quebrar mais um pouquinho. — Você lembra de tudo que vivemos, Heitor? Você lembra de todos os nossos sonhos? — Solucei.
Você lembra do que você fez, Enya?
— Cala a boca.
Eu odiava a minha mente em todos os momentos possíveis, mas não dava pra fugir dela, então eu precisava aprender a lidar com as vozes. Precisava me esforçar pra pensar em qualquer outra coisa. Mas quando se está sozinha, no silêncio absurdo do seu quarto, só você e as memórias dolorosas, fica difícil não surtar e eu estava com medo. Medo de acabar internada em uma clínica de loucos porque minha mente não estava funcionando da forma que deveria funcionar.
Depois de muito esforço, consegui controlar meus pensamentos. Porém ainda era difícil. Sentia-me esgotada por lutar comigo mesma, por isso chorei pelo que pareceu uma eternidade até que ouvi passos pequenos e leves que me fez controlar os soluços. Logo em seguida uma batida leve na porta me fez suspirar baixinho.
— Enya?
Escondi meu rosto no travesseiro para abafar o choro e não disse nada. Era Eva.
— Enya, você está acordada?
Eu continuei em silêncio e esperei para ouvir os passos de minha irmã se afastando. Entretanto ela continuava na porta do meu quarto.
— Enya abra a porta pra mim... Está chovendo. Tia Karla fez chocolate quente. Vem me contar histórias como antigamente.
Levantei minha cabeça quando ela disse chuva e me dei conta de que estava chovendo.
— Enya...
Observei a chuva cair na vidraça da janela e senti mais lágrimas escorrerem por minhas bochechas. Faziam meses que Heitor havia morrido, mas eu ainda lembrava das vezes em que ele entrava no meu quarto pela mesma janela que eu agora observava paralisada.
— Enya! Você está me ouvindo? — Eva insistiu.
Balancei a cabeça negativamente e sentei-me aos pés da cama, abraçando os meus joelhos. Depois de dois ou, talvez, cinco minutos ouvi os passos de minha irmã se afastando.
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Por favor, não se aproxime
Teen Fiction"Tentativas frustradas de ser feliz também matam." Enya e Luan são dois jovens frustrados pelo passado. Após Heitor, melhor amigo de ambos, cometer suicídio, deixando uma mensagem onde explica os motivos para ter desistido de viver, eles começam a q...