"O choro deles já virou um rio. Mesmo no calor tão usando blusa de frio..." — Não se machuque - Manu Silva.
— Eu estou com medo, Enya. — ouvi Eva murmurar.
Ela estava deitada em sua cama e minha tia estava deitada do lado dela, acariciando seus cabelos. Eu, por minha vez, estava sentada em uma cadeira do lado da cama enquanto pensava o quanto eu me sentia triste e cada vez mais culpada.
— Não precisa ficar com medo, querida. Foi só uma brincadeira de mau gosto. — disse Karla.
— De muito mau gosto. — murmurei, me encolhendo na cadeira.
Karla me olhou compreensiva.
— Enya, me conta uma história.
Olhei para minha irmã tão frágil abraçada a minha tia e tentei sorrir para ela. Eu não estava no clima para contar histórias, muito menos para fingir ser normal, mas ela era só uma criança e estava assustada, então peguei um dos livros que estavam sobre o criado-mudo e o abri para ler para ela. Depois de algum tempo, ela finalmente dormiu e eu saí do quarto com Karla.
— Temos que avisar a polícia, Enya. — disse Karla.
Senti meus olhos se encherem de lágrimas e em questão de segundos eu já estava soluçando baixinho. Minha tia não disse nada, apenas me abraçou.
— Não vamos ocupar a polícia com isso, Karla.
— Enya...
— Por favor... Não quero me magoar mais com isso. — disse eu. — Vou tirar aquilo de lá. — completei, saindo do abraço dela enxugando as lágrimas.
— Enya, querida...
— Não se preocupe. Vou ficar bem. — beijei a bochecha dela e saí.
O gato ainda estava pendurado no alpendre. Não pude reprimir a ânsia de vômito que me deu ao tocar naquela corda. Eu havia posto sacolas plásticas em minhas mãos, mas isso não me impedia de sentir a textura áspera. Parecia ser uma corda velha. Bem velha.
Cortei-a com uma faca que havia pegado na cozinha e a segurei no alto. O gato não era tão pesado e parecia está morto a algum tempo. Provavelmente o haviam colocado já morto ali. Eu me perguntava como havia ocorrido a morte dele e ao observar mais detalhadamente vi que ele tinha uma enorme ferida em sua barriga. Parecia ter sido esfaqueado antes de ter sido pendurado. Quem poderia ter feito isso? Eu não tinha ideia, mas era muita maldade fazer isso com um animal inocente.
Após jogar o gato no lixo, sentei-me na frente da casa sentindo-me esgotada. Eu não aguentava mais. Era quase 1 ano convivendo com a culpa pela morte de Heitor. Quase 1 ano em que acordei sentindo vontade de desistir de tudo. Quase 1 ano sentindo uma imensa vontade de dormir para sempre. Eu sabia que não era normal. No entanto, o que eu poderia fazer para mudar essa situação? Eu não sabia.
Ouvi minha tia me chamando e olhei para trás. Ela estava encostada à porta com uma expressão preocupada.
— Já está tarde, querida. É perigoso ficar aqui fora. Venha.
Assenti e tentei sorrir para ela.
A rua estava totalmente deserta, algumas partes escuras e em algum lugar um cachorro latia.
Um belo cenário para um filme de terror.Levantei e fui até minha tia, abraçando-a imediatamente. Ela retribuiu meu abraço e fechou a porta em seguida.
— Amanhã você vai pra escola, Enya. — ela disse.
— Não quero. — respondi.
Minha tia suspirou.
— Mas precisa. — disse.
— Mas tia...
— Enya, você já perdeu muitas aulas, querida! Já perdeu todo o ano letivo no ano passado. — disse ela. — Eu sei que é difícil para você, filha. Mas você precisa ter responsabilidade, já tem 19 anos, Enya.
Quando Heitor se suicidou, eu parei de ir à escola. Não me sentia bem lá. Havia decidido voltar, mas ainda não havia superado a morte dele. As lembranças que vinham com mais frequência na escola me deixavam pior do que eu já estava.
— Karla, por favor, não me obrigue a fazer o que eu não quero. — pedi.
— Não vou te obrigar, Enya. — disse. — Mas faça isso por sua irmã. Seja um exemplo para ela.
— Não consigo... — respondi, sentindo lágrimas surgirem em meus olhos de novo. — Sozinha eu não consigo, Karla.
Minha tia me abraçou novamente e percebi que ela estava chorando também. Não queria causar isso, mas era inevitável não chorar com tudo que eu estava sentindo.
— Então deixe alguém te ajudar, querida. Por favor, Enya. Vou marcar uma consulta com a psicológa mais próxima daqui, okay?
— Karla...
— Não aceito não como resposta, Enya. Enquanto você morar nessa casa, vai fazer o que eu disser, estamos entendidas? — disse autoritária.
Eu sabia que ela só estava fazendo aquilo para o meu bem, por isso apenas concordei.
— Vou ver se consigo marcar para a semana que vem. Enquanto isso você vai para a escola e tente se enturmar, filha. Não deixe a dor te dominar.
— Eu já deixei, Karla. Não consigo mais ser ajudada. Não consigo mais. Está tudo destruído aqui dentro de mim. — chorei.
— Não está não, Enya. Mesmo que esteja tudo dando errado agora, logo tudo vai se resolver. Apenas acredite nisso.
— Não consigo. — murmurei. — Não consigo, Karla. Não consigo acreditar mais... Sinto muito. — completei e subi as escadas correndo para o meu quarto.
Fechei a porta atrás de mim e abri as gavetas da cômoda em busca das minhas lâminas. Estavam todas lá, dentro de uma pequena caixinha de jóias.
Peguei a mais recente e deslizei com força pelo meu braço esquerdo. Os cortes estavam ficando cada vez mais fundos e frequentes. Eu não conseguia mais parar. Enquanto o sangue escorria rapidamente pelos meus pulsos e dedos, eu pensava no quão idiota eu havia sido ao acreditar que Heitor só estava seguindo modas. Onde que eu estava com a cabeça? Eu era tão burra!
Eu entendia meu namorado agora, mas infelizmente não podia dizer isso a ele mais, pois ele estava morto. Morto por toda a minha ignorância e hipocrisia. Eu me odiava mais que tudo naquele momento e, mesmo que pareça loucura, enquanto eu deslizava a lâmina por minha pele eu realmente acreditava que merecia isso. A dor, quero dizer. Doía um pouco, mas era libertador saber que de certa forma eu estava pagando pelo que havia feito a Heitor.
Contudo, após parar de cortar minha pele, chorei descontroladamente. Me sentia culpada por ter feito aquilo de novo. Muito culpada. Mais uma vez havia sido fraca e sabia que ficaria me sentindo mal por isso por um bom tempo, até decidir fazer de novo. Era sempre assim.
Não tomei banho naquela noite. Nojento, eu sei. Mas tente sentir-se um lixo todo dia e verá que a higiene não é o mais importante.
Deitei-me em minha cama com uma blusa enrolada em meu braço para estancar o sangue e dormi rapidamente com os olhos cheios de lágrimas e o braço cheio de sangue. Mais uma vez.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Por favor, não se aproxime
Jugendliteratur"Tentativas frustradas de ser feliz também matam." Enya e Luan são dois jovens frustrados pelo passado. Após Heitor, melhor amigo de ambos, cometer suicídio, deixando uma mensagem onde explica os motivos para ter desistido de viver, eles começam a q...