"Eu sou só humana e eu me quebro e me despedaço..."
— Human - Cristina PerriEstava frio e escuro quando cheguei em casa. Eram exatas 23h00 quando atravessei a sala em direção as escadas. A casa inteira estava em total escuridão, por isso tropecei em pelo menos três móveis antes de encontrar os degraus.
Entrei em meu quarto aos tropeços até encontrar o interruptor e acender a lâmpada. Tudo estava exatamente como eu havia deixado. Isso incluía roupas e livros espalhados pelo chão e em cima da cama. Arrumei tudo rapidamente e peguei meu celular dentro da mochila. Eu o tinha posto no modo silencioso e havia várias chamadas perdidas de Karla em diferentes horários e mensagens também. Ela devia está bem preocupada comigo.
Após tomar um banho e vestir um pijama, saí para falar com ela, mas antes entrei no quarto de Eva que ficava ao lado do meu. Ela dormia profundamente, parecia um anjo. Centifiquei-me que ela estava bem agasalhada e beijei-lhe a testa.
— Me desculpe por ser um monstro. — sussurrei baixinho.
Eva era apenas uma criança, porém já era forte. A vida exigiu isso dela quando nossos pais foram morar em outro país nos deixando sozinhas com Karla. Eles eram complicados. Eu tinha certeza que eles não tinham nascido para construir uma família. Eu odiava o fato de que eles não eram os pais que eu sonhava em ter todos os dias. Eu odiava, também, o fato de que eles haviam me posto na droga do mundo para sofrer. Talvez minha irmã não se lembrasse da aparência deles. Quando eles foram embora ela só tinha 2 anos. Contudo eu me lembrava e doía.
— Enya, é você? — a voz de Karla me fez saltar para trás.
Ela estava parada em frente a porta do quarto. Me olhava com uma aparência cansada e preocupada.
— Oi, tia. — respondi, me afastando de Eva e saindo do quarto.
Fechei a porta atrás de mim e fitei o rosto cansado de minha tia.
— Onde estava, querida? — perguntou, me puxando para um abraço. Retribui o abraço dela e tentei não chorar.
— No cemitério... — respondi.
Ela me afastou um pouco para olhar em meus olhos e, por fim, pareceu compreender e voltou a me abraçar mais forte.
— No cemitério a essa hora, Enya? — O tom de voz dela não era de repreensão, mas ela estava me repreendendo. Eu sabia que estava.
— Pulei o muro. — respondi, enquanto sentia uma lágrima solitária escorrer por minha bochecha. Reprimi as outras lágrimas que também queriam escapar e me afastei do abraço de Karla. Não queria deixá-la mais preocupada.
— Enya, isso não é certo, filha.
— Eu só queria ficar perto de Heitor, Karla.
Ela suspirou cansada.
— Venha, vou preparar algo para comer. — disse ela caminhando em direção as escadas. A segui relutante.
Já estava bem tarde. Karla estava cansada e eu sentia uma imensa vontade de me cortar.
O desejo de fazer novos cortes estava me matando e eu não queria reprimir esse desejo. Precisava fazer, por alguma razão, fazer o que minha mente insana estava sugerindo.Ainda lembro da primeira vez em que fiz um corte. Fora dois meses após a morte de Heitor. A culpa estava me consumindo e, numa noite ao acordar de um dos muitos pesadelos que eu tinha com o suicídio dele, levantei-me rapidamente da cama sentindo uma imensa vontade de gritar. Sentia raiva de mim. Eu me odiava cada vez mais. Então, sem pensar direito, peguei a primeira coisa que vi pela frente e deslizei com força pelo meu pulso. Era uma tesoura. Só percebei realmente o que tinha feito quando senti o sangue escorrer pelos meus dedos. Me assustei com isso, mas me assustei ainda mais quando notei que havia gostado da sensação.
Não durou muito, porém, e logo eu já me sentia um lixo pelo que havia feito. No entanto, isso não me impediu de fazer de novo. Eu sei o que está pensando. Sou fraca e maluca.— Não estou com fome, tia. — argumentei. Ela acendeu a luz da cozinha e começou a procurar o que iria precisar naquele momento, ignorando meus argumentos.
— Enya, você passou a tarde inteira e boa parte da noite na rua. Se te conheço bem, não comeu nada. Como pode não está com fome? — disse ela, continuando o que estava fazendo.
Era verdade. Eu não havia comido nada durante todo aquele tempo e eu estava realmente com fome. No entanto não tinha nenhuma vontade de comer.
— Já está tarde, Karla... Vá dormir.
— Enya, você não vai me convencer... Vou esquentar uma sopa pra você, pelo menos isso.
Suspirei derrotada. Karla não ia desistir.
— Okay... — respondi, sentando-me à mesa.
Ela sorriu para mim.
— Uma amiga sua ligou. — disse, ainda sorrindo. Parecia feliz com isso.
Franzi o cenho.
Que amiga?
— Ela disse que pegou o número daqui de casa com a direção da escola. Queria saber como você estava.
— Quem era, tia? — perguntei suspirando.
— Ela disse que se chamava Cassandra e pediu para eu dizer para você que não ia desistir. Isso te diz alguma coisa?
Sorri involuntariamente. Não sabia o porquê, mas ouvir isso despertava algo diferente em mim. Algo bom.
— Talvez, Karla... — respondi — Mas ela não é minha amiga.
Minha tia me olhou confusa e balançou a cabeça negativamente.
— Você quem sabe, Enya. Ela pareceu bem preocupada com você.
— Não importa. — Suspirei. — Você sabe que depois que Heitor morreu todos os meus amigos se afastaram de mim. Não entendo porque essa garota quer se aproximar de mim agora... ela nem me conhece.
— Tente dar uma chance, Enya. Se isolar do mundo não vai te ajudar a superar tudo o que aconteceu.
— Sei que não, Karla, mas no momento só quero ficar sozinha...
— Oh, Enya! Deixe de ser teimosa, tente se enturmar. Você precisa viver de novo, minha filha...
— Não consigo — murmurei, sentindo um nó se formar em minha garganta.
— Tente. — disse Karla.
Ela me olhava fixamente nos olhos com um ar de urgência.
— Tente por mim e por Eva... tente por você e por Heitor também. Olha o que está fazendo com você mesma, meu amor.— Eu não consigo, tia. Não consigo... — sussurrei. As lágrimas já escorriam com força por minhas bochechas e eu me odiava por isso.
Karla se aproximou de mim rapidamente e me abraçou. Me permiti chorar ali no abraço de minha tia enquanto ela sussurrava que ia ficar tudo bem, mas eu não acreditava nisso. Eu não acreditava que ia ficar tudo bem porque não ia. Eu sabia que não.
— Vou te levar a um psicólogo, Enya. — Karla disse em algum momento.
Me afastei dela rapidamente e a olhei assustada. Não havia nenhum sinal de
brincadeira no rosto dela.— Eu não sou louca, Karla! — disse eu.
Minha tia sorriu e passou as mãos nos meus cabelos devagar.
— Não estou dizendo que você é louca, querida. Sei que não é...
— Eu não preciso de um psicólogo, tia... Eu não quero!
Karla suspirou cansada.
— Okay, Enya, mas pense direito sobre isso, está bem? Psicólogo não é coisa de louco.
Assenti chorosa e fechei meus olhos. Eu não sabia mais o que fazer.
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Por favor, não se aproxime
Dla nastolatków"Tentativas frustradas de ser feliz também matam." Enya e Luan são dois jovens frustrados pelo passado. Após Heitor, melhor amigo de ambos, cometer suicídio, deixando uma mensagem onde explica os motivos para ter desistido de viver, eles começam a q...