Script #8

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De um momento inusitado


Tive uma vontade muito grande - como se eu pudesse realizá-la de modo autônomo! - de sair pelas ruas em passos vagarosos e desinteressados, sem nenhum tipo de objetivo, pelo puro e simples prazer de caminhar e observar, alternando o movimento da cabeça entre os lados esquerdo e direito tal qual algum tipo de ginástica para o pescoço. Olhando, de vez em quando, também para trás, caso alguma cena muito interessante fosse projetada. A única desvantagem, a meu ver, em fazer isso é a impossibilidade de respirar um ar puro nessa selva de pedra em que vivemos. No mais, o movimento de pedestres, automóveis, ciclistas, skatistas, motociclistas, luzes, (muitos) barulhos - uns apenas sussurros e outros verdadeiros estardalhaços - e animais zanzando ora com rumo ora sem ajudam a distrair a cabeça da confusão de pensamentos que praticam a simultaneidade e entopem a mente, cuja capacidade de processamento começa a falhar.

Em dado cruzamento de duas das principais ruas do bairro, havia, deitado com o olhar fixo apontando para uma máquina fumacenta, um cachorro. Ele era branco mas estava encardido, típico cão que vive nas ruas, de porte mediano e até gordinho para quem não tem um lar e, portanto, alimenta-se consoante a boa vontade de pessoas para lhe fornecer comida. Antes que eu passasse por ele, o canídeo me olhou nos olhos como se me pedisse algo. Aqueles poucos segundos pareceram durar horas; congelei ao ser encarado daquela maneira e é difícil descrever a comoção que me acometeu, em especial quando notei que ele tinha apenas uma orelha. Por  não conhecer sua história, fiquei sem saber o motivo de a outra orelha não estar em seu devido lugar (e isto me deixou em maior agonia). A máquina fumacenta era uma churrasqueira e ele, provavelmente, estava faminto. Lembro-me de ter falado com ele qualquer coisa de que não me recordo agora, apenas para sair daquela situação de congelamento, e ele pareceu entender palavra por palavra do que eu disse. Passei por ele e tudo o que eu sentia esvaziou-se, perdeu o sentido, desintegrou-se e tornou-se cinzas tão finas que a leve brisa que corria levou para bem longe.

No entanto, não me senti melhor por isso, pois a verdade é que fiquei com a sensação de que deveria levá-lo comigo, dar-lhe abrigo, banho, comida, amor... De que maneira fazer isto, se sou apenas uma virtualidade?

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