Capítulo 7

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POV Eduardo

Após Inês ir embora, faço algo que evitava desde o acidente: coloco minhas músicas favoritas para tocar no celular. Deficientes visuais têm uma grande aliada na tecnologia, apenas com comandos de voz posso acessar muitos aplicativos.

Antes de perder a visão, gostava de ficar de olhos fechados, aproveitando cada nota, tentando identificar todos os instrumentos. Porém, era só abri-los novamente e voltar a enxergar meu entorno. Agora, a escuridão é minha companhia.

Finjo que voltei no tempo e tento aproveitar o momento e sinto a paz me envolver. Inicia uma das sonatas que Beethoven compôs depois de surdo e fico a pensar se também posso vencer minhas deficiências. Se pelo menos minhas mãos voltassem à normalidade, mas acho impossível, os danos foram muito extensos.

Desligo a música. Não posso me permitir alimentar ilusões. Estou quebrado e não há solução. Inês é uma sonhadora, mas eu não.

A noite é recheada de pesadelos com o acidente e de sonhos com meu piano e uma voz gentil, que são ainda mais dolorosos. Acordo de mau humor e não me levanto quando escuto que Inês chegou.

Meu pai vem me ver, dizendo-se preocupado. Um pouco mais tarde, é Inês que invade meu quarto.

- Levante-se, Eduardo, trouxe seu café – não posso vê-la, mas seu tom indica que não tenho opção, mas sou teimoso.

- Não quero, vá embora.

- Não perguntei, meu trabalho é cuidar de você e é o que vou fazer – puxa meu lençol, mostrando que fala sério.

Sento contrariado e ela me entrega uma troca de roupa. Vou para o banheiro e tomo meu banho e faço minha higiene. Antes mesmo de sair, escuto que ela colocou música para tocar. Essa garota não me deixa em paz.

- Pronto, estou aqui. E agora, senhora? – ironizo para deixá-la constrangida, mas não funciona.

- Muito bem, agora curativo, café da manhã e depois, nosso passeio.

Sento-me à escrivaninha e obedeço sem questionar. Após seus cuidados, como tudo que ela me oferece, e nem é um sacrifício, já que está delicioso.

Pelo caminho até a praça, ela colhe flores e folhas perfumadas e pede que eu diga o que é, através do olfato e do toque. Pede-me que fale se um carro ou uma moto está vindo, e faço o que me manda, pois sei que tem boa intenção. Até chega a ser divertido, mas nunca irei admitir.

Quando não está dando ordens, ela é tão doce e meiga, que não posso acreditar que o sargento matinal e esta menina são a mesma pessoa.

Por mais que queira me esconder atrás de minha amargura, ela parece conhecer as frestas e me desarma, sem que eu perceba ou possa evitar. Ela tem uma alegria e otimismo que contagia e seu riso chama o meu.

- Você precisa conhecer minha avó, Eduardo. Ela é uma figura.

- Mora com você?

- Sim. Faz uns 4 anos que veio do Nordeste para cá, afim de visitar o filho e netos, mas ficou. Ela tem o sotaque de sua região, mas o engraçado não é isso, mas sim suas histórias e expressões.

- Perdi todos os meus avós muito cedo, sinto falta de tê-los por perto.

- Empresto a minha, se quiser. Mas se prepare que ela pode colocar você na lista do Santo Antônio.

- O que quer dizer?

- Ela brinca que fez uma parceria com o santo para que todos encontrem seus pares, e reza todo dia para ele.

- É muito devota?

- Acho que é exigente, isso sim. Não sei se é verdade, mas disse que o colocou de cabeça para baixo no copo de água por causa de Manoel, meu irmão mais velho, hoje casado.

- Ele deu trabalho para casar? Não queria se amarrar?

- O problema era que terminou com a moça que amava por uma bobeira e ficaram 7 anos separados por contar disso.

- É muito tempo... E ainda se gostavam?

- Sim, nunca se esqueceram. Mas Santo Antônio deu um jeito – acompanho seu riso, imaginando a cena do santo no copo.

- E você está facilitando o serviço dele?

- Minha avó acha que não, mas não é minha culpa. Os garotos que me chamam para sair só querem aproveitar, não estão pensando em relacionamentos.

- Nunca saiu com alguém só por diversão?

- Não, meus únicos encontros foram com rapazes que aparentemente tinham sentimentos por mim, mas então era eu que nada sentia. Não deu certo.

- Sente falta de ter alguém?

- Sim, queria muito amar e ser amada. Mas ainda não perdi a esperança. Ele deve estar por aí em algum lugar – sinto ciúmes dele sem nem saber onde está, e me repreendo por deixar meus sentimentos soltos, sem direção.

- Também não tive sorte com namoradas.

- Sério? Por quê?

- Minha namorada do ensino médio foi estudar longe e a distância acabou com o relacionamento. Depois teve mais uma séria, mas acabou também.

- Sinto muito. Estava apaixonado?

- Pensava que sim, mas olhando para trás vejo que não. Se fosse amor de verdade teria sofrido com os términos, mas não foi o caso.

- Uma garota especial espera por você, tenho certeza.

- Antes podia ser, mas agora...

- Qual o problema?

- Quem vai querer um cego aleijado?

- Para com isso, Eduardo. Se até o Fera conquistou a Bela, você é um caso fácil para o cupido, mesmo que não volte a ver e suas mãos não voltem a mobilidade de antes.

- Bela e a Fera? Jura? Não tinha um exemplo mais realista?

- Você entendeu. Pare de ser rabugento que arrumo outro príncipe para você ser.

Quando voltamos à minha casa, fico com ela na cozinha, enquanto prepara o almoço e lava a louça. É uma situação tão familiar e aconchegante, mesmo na minha cegueira, que me sinto relaxado. Posso imaginar nós dois assim em muitos outras oportunidades, e tenho que refrear meus sentimentos, pois sei que estou indo por caminhos perigosos.

Ela me ajuda com o almoço e me deito enquanto arruma a cozinha. Aproveito para dormir um pouco e percebo que durante o dia meu sono é bem mais tranquilo.

Passamos uma tarde gostosa com muita leitura. Estou adorando o livro que ela escolheu. Sua voz me acalma, e me permito esquecer de minha condição por alguns minutos.

Peço para que o jantar seja servido mais cedo, pois assim ela me ajuda. Não consegui manter minha fachada de autossuficiente. Essa menina destrói todas as minhas resistências. Ela me beija novamente o rosto antes de ir embora, fala dos planos para o dia seguinte e só posso desejar que a noite passe rápido para tê-la por perto novamente. Quando percebo a direção de meus pensamentos, tento refreá-los, mas não sei como evitar me apegar à Inês.



Quem gostou da Inês autoritária? E dela romântica?

Ensinando a sonhar - Livro 3 da Série SonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora