Encontro no caís

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"Nas horas graves, os olhos ficam cegos

É preciso, então, enxergar com o coração." Antoine de Saint-Exupéry

Perder alguém é sempre doloroso. Você sente um monte de coisas de uma vez, e não sabe como lidar com elas. E as pessoas dizem que é preciso ser forte, continuar, que a pessoa que se foi ainda continuará viva em você, que um dia vão se encontrar... Pode até ser verdade, não sei, mas isso não diminui a dor do momento, a vontade de gritar e a ausência que te assola no meio da noite, quando percebe que essa pessoa não vai mais voltar realmente.
Quando meu pai morreu, doeu, mas eu era tão criança para entender de verdade... Para entender que ele realmente não iria mais voltar. Que tudo não passara de mais uma das suas viagens longas. Foi no natal após a sua morte que eu entendi que ele realmente havia ido, e ele acabou morrendo novamente ali.
E aquela dor ia me tomar ainda muitas vezes na vida. Eu ainda ia perder muitas pessoas, como todo mundo, e então, adulto, quando finalmente compreendendo que a morte realmente é mais que uma ausência, tudo ia doer muito mais. Mais do que uma queimadura, um corte em ferro, algo que é físico tão quão psicológico, com todas as fases do luto e a sensação de que arrancam um órgão vital seu e te mandam continuar de pé.
Quando eu a conheci naquela noite, eu nunca imaginei que dentro de algum tempo eu iria perdê-la. Você pode estar pensando que eu acabei com algum suspense da história, mas isso não é uma história de suspense, é a minha história. E a morte de Hinata não foi tão importante quando a vida de Hinata, e a minha vida pós Hinata.
E claro que naquela noite, meio embriagado, amargo por tudo o que a vida estava fazendo comigo e aquela provação que eu achava sem sentido, naquela noite eu nunca podia imaginar que algum tempo depois eu estaria tentando ressuscitá-la na estrada e teria que ver mais uma pessoa que eu aprendera a amar partir.
Mas isso não é hora ainda.

Como eu disse antes, a vida dela foi o que importou de fato, e todos que ela mudou e ensinou.
E isso incluiu a mim, seu mais imprudente aluno.
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Um silêncio perdurou por algum tempo no gramado, quebrado apenas pelos sons do festival ao longe. Sasuke e Sakura olhavam para mim, e garota olhava para mim. Porra, todos olhavam para mim.
E eu apenas para ela.
Não, eu não estava apaixonado ou nada disso. Apenas via a minha frente o meu futuro, e não conseguia desviar os olhos dele. Eu via o que eu seria em pouco tempo. E foi como se até mesmo o álcool evaporasse das minhas veias.
Eu podia fazer muitas coisas naquela momento. Em outros tempos dizer algo espirituoso que sumisse com a situação que extrapolava a palavra constrangedora. Eu podia simplesmente rir, me desculpar por estar um tanto embriagado e por ter sido rude com todos. Eu não era assim, mesmo quando bebia, eu nunca desrespeitava as pessoas gratuitamente.
Mas eu não era o mesmo de antes.

Eu podia fazer piada das coisas, mas aquilo estava doendo tanto que eu não conseguia mais disfarçar minha raiva. Minha confusão. Eu estava tentando, mas eu oscilava demais. E lá estavam aqueles olhos opacos em minha direção, como se pudessem me ver.
– Hinata-chan! - o sobrancelhudo que dava em cima da Sakura falou, quebrando o silêncio. - Você saiu do hospital!
– Não, ela ainda está lá. - O garoto que a acompanhava resmungou sarcasticamente enquanto os dois entravam na clareira, ele segurando sua mão a guiando. Senti o olhar de raiva dele sob mim por instantes e então desviar como se eu não existisse.
– Neji, não seja mal-educado. - a voz rouca e doce falou divertida. Eles agiam como se nada houvesse acontecido minutos atrás. Eu sentia ainda alguns olhares em mim enquanto a maioria ia falar com a menina, perguntar como ela estava. Ela sentou na grama com ajuda do outro, do outro lado perto dos demais conversando animados. Eu continuava na mesma pose, olhando para baixo, o cabelo sob meus olhos.
– Naruto...
A voz suave de Sakura, incerta me tirou do torpor e eu a olhei confuso. O moreno preguiçoso continuava deitado no chão, já voltando a olhar para o céu com tranquilidade, e Sasuke ainda estava de pé a meu lado me olhando.
– Estou bem. - Murmurei. - Desculpem. Eu apenas...
– Tudo bem. - Ela me abraçou me curvando e acariciando meus cabelos. - Não precisa se esforçar tanto, tentar tanto para esconder o que sente. É estúpido.
Eu assenti, mas mesmo assim meus pés se moveram sozinhos, primeiro se afastando de Sakura, depois do gramado. E eu mal ouvi, ou não processei os gritos de Sasuke e dela me chamando. Quando eu dei por mim, já estava correndo no meio da multidão e para longe deles.
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Me julguem por ser fraco. Por minha mente ter se tornado uma bagunça. Eu nem sabia do que eu estava correndo até parar no cais para o rio e sentar ali com os pés na água gelada, com as calças dobradas até os joelhos. Eu nem sabia direito o que eu estava sentindo até perceber que estava chorando em silêncio e pensando em o quanto minha vida estava se tornando uma bagunça.
Eu estava com medo, e não queria que meus amigos soubessem e me achassem covarde. Eu estava com medo por que estava começando a ter raiva da minha situação. Eu realmente, de verdade, queria pensar que Deus tinha um porquê de tudo isso, mas eu não via sentido nenhum. Porque, verdade seja dito, minha vida estava fodida. E estar com raiva todo o tempo me assustava demais.
– A vista dos fogos é boa daqui.
Uma voz vinda de perto quase me matou do susto. Virei o pescoço rapidamente em direção a minha direita encontrando um estranho recostado na grade da ponte do cais. Minha visão já se mostrando megera e a noite não me permitiam ver muito bem daquela distância, além da pequena luz do que devia ser um cigarro.
Rapidamente virei novamente para frente limpando meus olhos. Em outras ocasiões teria ficado feliz em puxar assunto, mas dessa vez apenas continuei olhando para o lado escuro esperando o desconhecido ir embora. E pensei mesmo que ele tinha ido tamanho silêncio e relaxei com um suspiro cansado.
– Conversar ajuda.
Parece que ele não tinha ido. E o infeliz ainda riu da minha possível cara quando sentou a meu lado, jogando os pés descalços na água do lago. Usava uma bermuda clara e uma camisa de manga comprida. Os cabelos eram negros e escuros, curtos e um pouco parecidos com os meus. O rosto era pálido, os olhos pareciam negros na penumbra, e ele me lembrava alguém que...
Desviei os olhos ao perceber que ele me encarava com um sorriso de canto. E não pude não notar internamente que meu comportamento arredio estava mais para Sasuke. Mas eu só queria ficar sozinho uma maldita vez. Eu sempre me deixava rodear por todos, eu sempre tentava estar perto quando precisavam de mim. Era apenas aquela vez, eu queria apenas um maldito tempo para ficar sozinho e ser fraco, mas o universo me odiava mesmo.
Nem chorar na minha eu podia até vir um estranho me tirar a paz.
– Eu tinha uma namorada chamada Rin, eu sempre vinha aqui com ela sabe. Ela tinha uns cabelos castanhos, e um sorriso largo. A gente sempre assistia o festival, desde criança nesse cais. Depois dos quinze, a gente assistia os fogos aqui, depois pegava meu carro e a gente ia transar nele perto do cinedrive que fica uns quilômetros ao leste...
O homem continuava falando e eu calado. E, claro que eu sendo eu estava ficando curioso. Afinal que tipo de pessoa ficava falando aquelas coisas para um desconhecido?
...
Ok, talvez eu mesmo, de uns dias atrás antes de descobrir que tinha um amiguinho estranho na minha cabeça que podia me matar, e na melhor das hipóteses, me deixar cego.
Quando percebi já estava interrompendo, porque como minha mãe e o Teme diziam, eu tinha a boca grande e a curiosidade maior ainda, mesmo com minha personalidade em transição para amargo On.
– O que aconteceu com ela? - perguntei, já que percebi como ele usava o passado naquela história sem pé nem cabeça.
– Peguei ela transando com meu melhor amigo. Ela me deu um pé na bunda depois, e levou meu carro. Desde então venho assistir sozinho aqui. Fim. Agora sua vez.
Fiquei olhando chocado.
– Que tipo de história sem graça é essa? - bufei balançando meus pés na água e o homem riu.
– Minha vida. Ora moleque, a vida real não é tão emocionante e encantadora às vezes. Se fosse o final teria sido mais um "Casaram e tiveram lindos filhinhos e viveram felizes em uma casinha de cerca branca." E não "Ele foi corneado, largado, e agora puxa assunto com um loirinho chorão."
– Chorão é sua mãe! - virei irritado e ultrajado, já medindo minhas chances na briga que ia começar. Eu era baixinho, mas era filho da Kushina. E ninguém chamava o filho da Kushina de chorão e saia inteiro, mesmo que aquele Alien perturbador de paz alheia tivesse no minimo uns vinte centimetros a mais de altura e fosse mais largo também. Ele mesmo não parecia nenhum pouco com minha cara assassina para ele.
Droga, eu tinha que aprender a fazer como o Sasuke, ou a minha mãe, que fazia até O SASUKE ficar com medo apenas com uma cara de "Vou te bater se não se calar agora."
– Minha mãe era chorona mesmo. Ela fazia até um biquinho bonitinho como esse seu as vezes também.
O homem riu e eu abri a boca indignado. O universo me odiava. Eu estava ficando cego(sempre repetindo), meu SENECA estava em mau estado, tinha sido rude com meus amigos, dado uma bola fora, estava puto da vida, queria chorar em paz, surgia agora um DESGRAÇADO tirando onda com minha cara, e PUTA QUE PARIU, ainda me deixando vermelho.
– Agora você 'ta zoando com minha cara. - falei olhando para o céu procurando um sinal que Deus estava me escutando, queria um sinal, nem que fosse uma risada do tipo 'pegadinha com tua cara' ou coisa assim vinda dos céus. Mas tudo o que ouvi foi a risada do estranho.
– Eu pergunto isso para ele todo o tempo. Quer um cigarro?
Neguei ainda incrédulo com aquela noite estranha.
– Por que estava chorando mesmo?
– Escuta aqui tio, isso não é da sua conta não. - Desculpa a falta de educação mãe, mas desconta a situação.
– Ora, eu contei minha história, devia contar a sua. - ele continuou risonho ignorando meu humor ácido.
– Isso só acontece em filmes. Agora cai fora.
– O cais é publico.
Suspirei emburrado. Não queria dar o gosto de sair para aquele esquisito. Pior que ele continuava me olhando de banda divertido, me deixando constrangido, coisa que era novidade para mim.
Ia mandar ele se fuder e parar de me encarar de forma pervertida até quando ele se levantou e se esticou. Uma sobrancelha minha arqueou automaticamente quando ele deu uns tapinhas em meu ombros.
– Vou te deixar assistir aqui em meu lugar por hoje. Sou Obito, por sinal. - Ele disse e sacudi meu ombro, em vista que ele não tirava a mão.
– Certo.
...
...
– Agora você diz seu nome. Educação.
– Naruto. - falei com um suspiro para ele não voltar a sentar. Ele riu e voltei a olhar a água o ignorando.
– Nos vemos Naruto. Vou te deixar sozinho com seus amigos, outra hora você me conta por que estava chorando...
– Eu não ESTAVA CHORANDO!- Vociferei mostrando os punhos até me dar conta que ele falou "amigos". Virei e vi as costas do estranho se afastando na ponte e vi mais duas pessoas no meu campo de visão.
Ao reconhecer fiquei vermelho e abaixei o olhar para a água sem saber o que falar.
– Eu vou estar na ponte. - o garoto murmurou e senti um olhar ameaçador na minha nuca enquanto ele se afastava após a ajudar a se sentar a meu lado. Eu não entendi o porquê dela estar ali, mas continuei em silêncio até ela se pronunciar.
– Seus amigos estão te procurando. Estão preocupados... Naruto, né?
Murmurei um sim baixo e a olhei de relance. Ela estava sentada por sob as panturrilhas a meu lado, não muito distante. Os cabelos continuavam soltos e caiam por seus ombros e costas e a voz era rouca e ao mesmo tempo suave, parecia um pouco musical até. Agradável. Mesmo que eu sentisse os olhos do outro moreno de cabelos cumpridos nas minhas costas a uma certa distância, em vigília.
– Eles pediram para a gente ajudar a te procurar. Eles gostam muito de você mesmo.
A voz dela não era repressora, mas me senti envergonhado. Quem diria, o espalhafatoso Naruto Uzumaki envergonhado duas vezes em uma mesma noite.
– Eu não queria preocupar ninguém... - murmurei sincero. A voz suave destravava minha língua.
– Quando a gente gosta de alguém a gente sempre se preocupa.- Ela falou fitando o céu sem ver. O perfil era delicado, o nariz arrebitado e a tez suave. Como a voz. - Por isso meu irmão está parado, suponho, na ponte olhando você pronto para te matar se se meter a engraçadinho, Naruto Uzumaki.
Ela falou com o tom divertido e não tive como não rir. Então ele era irmão dela. Eles realmente se pareciam um pouco.
– Ele não devia te deixar a sós com um estranho então. - falei mais calmo.
– Não deixe ele ouvir isso, ele quase não larga do meu pé... E acredite, ele arrancaria sua cabeça a distancia, só quero frisar para parar com qualquer pensamento de se aproveitar de uma menina cega. - Ela continuou.
A olhei curioso, mas ela ainda parecia divertida. Ela falava de ser... bem. Com naturalidade. Eu mal conseguia falar a palavra sem ser amargo.
– Há quanto tempo você... - eu me vi perguntando de imediato e parei vermelho. Ela riu.
– Sou cega. A palavra não morde Naruto. - ela falou calma. - Eu nasci assim. E com alguns outros probleminhas para formar um kit completo.
Ela riu no final e não entendi, e nem sabia se podia perguntar o resto. Uns tempos atrás eu teria perguntado de boa, mas agora eu sabia o quanto certos assuntos podia ser... não discutíveis com estranhos.
– Sua amiga me contou da aventura de vocês. Não deveria falar isso, mas foi o fato de pilotar avião que me fez ajudar a te procurar. - Ela falou com uma voz cúmplice. - Ia pedir para você me ajudar a bombardear o clube de dança de Konoha, eu o odeio. Deve ser mais fácil de cima para acabar com ele. O que acha?
Eu ri alto.
– É tão ruim?
– Você não tem ideia! Experimente ser obrigada a dançar toda semana ali. Meu pai me obriga. Alguém tem que avisar a ela que a filha dele é cega, mas não surda, porque as músicas são horríveis...
Eu ri mais ainda. E ela me seguiu. Quase parei para ouvi-la. A risada era bonita de se ouvir.
– Agora, sua amiga me contou também sobre a sua declaração e apresentação memorável no gramado. - eu ri quando ela mencionou isso. - Então você está entrando para o clube? Eu posso te contar uma ou duas coisas sobre isso depois.
Eu parei de rir e fitei o lago melancolicamente.
– Isso se você não cortar os pulsos antes. Meus sentidos são apurados, sinto depressão no ar em ondas fortes! - Ela se protegeu com os braços para meu lado e novamente ri. - Eu percebo pensamentos suicidas pelo cheiro.
– Você é uma jedi por acaso? - zombei.
Ela riu e balançou a cabeça: - Quem eu sou, Naruto Uzumaki, é um segredo. No momento, eu só posso pedir para você assistir aos fogos comigo. Eu quero que os veja para mim.
A fitei confuso. Ela pareceu perceber no ar, novamente, e riu.
– Vou te mostrar a primeira coisa da vida de alguém que enxerga de outra forma. - ela virou para mim quase como se pudesse me ver, e no mesmo momento os fogos começaram a explodir no ar iluminando seu rosto na penumbra em várias cores. Elas pareciam refletir nos olhos opacos que me prendiam e murmurei um sim curioso.
– Me diga as cores que estão soltando...
– Azul, verde, rosa, laranja e amarelo... - falei me voltando para o céu.
– Agora feche os olhos, vou te mostrar como se assistem fogos em meu mundo.
Obedeci hesitante. Eu tinha medo de fechar os olhos. Senti a mão dela na minha: - Não se preocupe, não vai ficar escuro muito tempo. - Ela falou por sob o barulho. - Imagine algo quente e confortável em sua vida, que lhe envolva. Esse é o amarelo...
Ela começou a falar, com sua voz suave, narrando sensações e ligando a cores e aos sons dos fogos que ela nunca havia visto, mas que ainda assim se tornavam mais belos em suas palavras, que me faziam me lembrar do colo da minha mãe, da risada da Sakura, dos biscoitos do fim de tarde, dos jogos de futebol com Sasuke e Itachi, do galpão de Jiraya com o Teme, e do meu pai me levantando do chão. Era mágico e surpreendente como tudo isso vinha a meus olhos fechados enquanto eu imaginava os fogos no céu.
No fim abri meus olhos, os fogos já acabavam e ela sorria a meu lado, também de olhos fechados. E como se sentisse que eu a olhava, virou para mim e os abriu.
– Esse é meu mundo.
Eu assenti, ato falho, já que ela não podia ver. Então agradeci em um sussurro e apertei sua mão pequena na minha. Minutos depois, quando enfim me levantei a auxiliando, vendo que na verdade ela era muito mais ágil do que eu nisso, encontrei os olhos de Sasuke e Sakura, ao lado do irmão dela e do moreno preguiçoso recostados na ponte nos olhando não sabia por quanto tempo. Apenas sorri para meus amigos e fui até eles, sentindo uma leveza que não sentia a um tempinho, e ainda, sem perceber, segurando a mão da garota.
Aquele havia sido seu primeiro ensinamento, mesmo que eu ainda não houvesse assimilando em sua totalidade: Não é preciso ver para enxergar.

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