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Não consigo dormir. Acho que ainda estou em choque. O que aconteceu na casa de Tristan foi inexplicável. Eu supostamente sou uma psiquiatra, eu não devia sentir certo?

Pois... eu noutra altura diria que estava certa mas sinceramente eu já não sei se realmente o que me obrigaram a pensar era mesmo verdade.

Toda a minha família foi psiquiatra e sempre foram indiferentes ao mundo. Nunca mostraram a necessidade de sentir, então porque raio eu teria de ser diferente?! A minha tia contou-me que várias pessoas da minha família foram "expulsas" e afastadas da nossa família porque foram fracas e deixaram-se cair em tentações como amar perdidamente e seguir outras paixões que não fosse psiquiatria.

Não nos é permitido falar dessas pessoas desde que são explusas e na maioria das vezes, nunca mais as vemos.

Lembro-me da minha irmã, Jeila, que se deixou apaixonar por um dançarino e que um dia chegou a casa com ele de mão dada a dizer que estava noiva dele e que iria desistir de psiquiatria para ser dançarina.

Depois desse dia nunca mais a vi e a minha mãe não nos permite falar sobre ela.

Tenho de admitir que tenho saudades dela. Sem a minha mãe saber, eu ainda falo com ela por telefone. Vive em Nova York e é uma dançarina profissional tal como o marido mas ela tem tido muito trabalho e nós já não falamos há algum tempo.

Jeila é 2 anos mais velha que eu. Para além dela, tenho mais 2 irmãos mais novos. Ambos rapazes, são gémeos falsos, e têm agora 16 anos.

Olho para o relógio e noto que ainda são 2.30 da madrugada.

Remungo comigo própria e vou até à varanda tentando ditrair-me.

Eu já sei que não vou conseguir dormir esta noite por isso decido ir até à varanda e apreciar a vista que tanto gosto de analisar.

Gosto de decorar cada pormenor de uma paisagem e depois, algum tempo depois, analisar novamente e ver o que a natureza mudou nela.

Observo bem a vista que já se tornou habitual a meus olhos neste últimos dias e reparo em algumas modificações.

Reparo que a vizinha da frente varreu o seu quintal e aparou as suas plantas, que o ford que ontem estava imundo estava hoje limpo e reluzente e que as árvores estavam a perder um pouco da sua tonalidade verde sendo substituida por uma tonalidade acastanhada pois o outono já se está a aproximar.

Sinto o cheiro a tabaco e coço discretamente o meu nariz.

Ugh, odeio tabaco.

Sigo o cheiro e reparo que era Tristan que estava no seu quintal a fumar.

Tonto. Se ele soubesse o mal que aquilo faz. Mas claro que sabe, e é isso o que mais me irrita. Porque sabem que fumar mata mas mesmo assim continuam a fazê-lo.

-Se sabes que fumar mata, porque continuas a fazê-lo? Estás a matar-te ao poucos. Ficas cada vez mais próximo da morte quando fumas a porcaria de mais um cigarro.- falo, não tentando disfarçar a minha frustação enquanto falo.

Tristan olha para mim com uma expressão serena.

-Sabes...- ele começa calmamente, fumando uma passa antes de voltar a falar.- Todos estamos a morrer. Estamos cada vez mais próximos da morte a cada segundo que passa.

-Mesmo assim, estás a apressar a tua morte.- falo um pouco incomodada por ele não se importar por se estar a matar.

-Não. Eu não estou a apressar nada. Deus mandou-nos à Terra com os segundos contados. Podes tentar matar-te várias vezes mas só morrerás quando os teus segundos que Deus te deu acabarem. Por isso fumar não irá apressar a minha morte porque ela já fora marcada por Deus, antes mesmo de eu ter vindo para Terra. A vida é apenas a nossa passagem na Terra. Todos temos uma missão, uns têm de encontrar o seu amor, outros estão a pagar pelos seus pecados numa vida anterior, e outros estão aqui para passar a mensagem de Deus. Amar o outro como a nós próprios.

Ouço atentamente as suas palavras e reflito um pouco enquanto este voltava a se drogar com aquele fumo vicioso.

-Se fumar não apressa a nossa morte, porque dizem que fazê-lo mata?

Tristan volta a encarar-me com uma expressão séria.

-Tudo mata Mila. O ar mata, o amor mata, o trabalho mata, o tabaco mata, a droga mata, o tempo mata.

Olho para ele confusa.

-Não entendo...-confesso.- Como é que tudo o que tu disses-te pode matar se disses-te que temos os  segundos contados e nada nos mata sem estes acabarem? Porque se temos mesmo os segundos contados, por mais que eu me drogue por exemplo, não irei morrer mais cedo porque tenho já a minha morte marcada.

Tristan solta um sorriso de lado mas discreto, quase sendo impossível notar que estava a sorrir.

-Não estás a entender. Tudo o que eu te disse mata porque gasta-nos  os segundos contados que temos. Por exemplo agora, nós estamos a matarmo-nos um ao outro porque estamos, neste momento,a falar um com o outro, gastando o tempo que Deus nos deu. Entendes agora?

Assinto completamente fascinada. Estava dislumbrada com a sabedoria de Tristan.

-Mas se é assim, porque apenas nos chamam à atenção do tabaco e das drogas por exemplo? Porque também não nos avisam que rir mata, ou conversar, e essas coisas?

Ele ri pelo nariz e fuma uma última passa de fumo antes de apagar o cigarro no cinzeiro e deixá-lo lá morto. Porque os seus segundos acabaram.

-Porque há pessoas que não acreditam que não podemos mexer no tempo que temos para viver. Eles acreditam que, por alguma razão estúpida, nós podemos apressar a morte quando fumamos ou nos drogamos. Mas isso é mentira. Deus não cria nada em vão. Ele criou o mundo e deu-nos o privilégio que marcar presença nela dando-nos apenas uma condição. Os segundos que nós temos. Nós somos livres para fazermos o que nós queremos, podem nos fazer muitas coisas mas a única coisa que não podem mexer é no tempo que temos para viver.

-Então se Deus, é considerado assim tão poderoso e Santo porque também criou coisas más?

-Deus criou-as para aprendermos a distinguir o certo do errado.

-Mas muita gente não sabe distinguir!- exclamo indignada.

Tristan lança-me um sorriso aberto.

-É por isso que há a reencarnação. Nós reencarna-mos até distinguir-mos bem o certo do errado e que devemos praticar apenas o certo. Quando finalmente isso acontece, tornamo-nos santos e assim  não temos de voltar a Terra. Apenas ficamos a viver para sempre ao lado de Deus, finalmente em paz.

Olho para ele pensativa. Nunca pensei que Tristan sobesse tanto sobre a vida.

-Vai dormir Mila. Pareces cansada.- ele fala carinhosamente.

Assinto.

-Boa noite Tristan.

-Boa noite Mila. -ele sussura antes de eu entrar dentro de casa.

Deito-me na cama e acabo por adormecer pensando no que Tristan me acabara de dizer.

Ele é muito sábio e isso é encantador.

I Feel AgainOnde histórias criam vida. Descubra agora