(conto) MÉLICA MALÍCIA - Parte I: A Freira e a Fera

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"Este conto é um tributo à luxúria; o mais injustiçado dentre os pecados."


Badalar da afastada campana atroava do coração do bosque. Era marcada a metade da tarde de estio e o culto à Deusa não demoraria a iniciar. Cessando suas atividades, as dezenas de clérigos se retiravam à capela do monastério, esvaziando o pomar, a biblioteca e o cemitério. De todos, Lúmia era a mais distante no momento, além dos campos, regressando às pressas ao bosque apertando meia dúzia de talos de flores entre os dedos.


— Ah, a luxúria da preguiça, por que segues-me?

A brisa arrastou folhas e balançou copas ante a silenciosa tarde. Quietude demasiada trouxera estranheza. As aves haviam se calado e nem os comuns pássaros podia ouvir. Desacelerou o passo ao incomodar-se com o som do próprio caminhar apressado. Mélica malícia adejava nos arvoredos e soube que uma estranha presença estava a lhe observar.

À beira da clareira, o pulsar tomou seu peito, e apertou ainda mais as flores. Hesitou varrendo os horizontes com o olhar e nada havia senão sua mente lhe sabotando. Enquanto refletia se iria se sentir mais segura ao adentrar logo no bosque ou continuar no descampado, viu-se sugando e mordiscando o lábio inferior, e notara a própria mão que subira intrusa pela silhueta, alcançando sobre a túnica o centro do peito. Surpresa, congelou a respiração. Tal desafiasse seu dogma, os dedos agarraram de forma desejosa ao seio.

— Não... posso... — Lúmia censurou-se retomando controle dos dedos, que de pouco adiantou, pois levou-os à boca e a outra mão ao ventre, deslizando para entre as coxas que se espremiam sob a saia. Lutava contra o próprio corpo sem entender a razão.

E antes de lançar qualquer pergunta ao ar, uma risada debochada e ao mesmo tempo agradável voou até seus ouvidos.

— Não podes? — Ria suavemente a voz que ecoava da mata. — Então esta é outra luxúria para ti?

O timbre inumano deveria tê-la feito se desesperar e correr, mas era um tom masculino sedutor, companheiro e traiçoeiro ao mesmo tempo, que a impedia de se assustar por completo. Sentia-se envolvida gradativamente por uma pegajosa teia invisível.

— Demônio, afaste-se! — O coração cavalgava, os olhos dilatavam-se. Lutando contra os instintos, buscou esgueirar-se pelo bosque, desejando tanto fugir quanto encontrar o emanador da voz. — Pares de me tentar! Pares de me corromper! — Gritava sem autoridade.

Tropeçara se apoiando nas árvores do caminho ao imaginar um imenso vulto da criatura sob as copas.

Demônio? — O tom agradável tornou-se consideravelmente mais sério, mas não menos sedutor. A presença a seguia, de qualquer direção, ecoando indetectável, sem fazer qualquer som ao mover-se. — Sou a progênie pura da natureza, tenho chifres e garras igual a qualquer animal nobre destes bosques — cresceu a voz, estremecendo o ar momentaneamente —, não me compares aos demônios.

— És um! — A monja acelerava e já não se importava com a vegetação que a cada pouco destruía um pedaço de sua túnica. — Por que segues-me?

— Acabaste de perguntar isso para si mesma, agora pergunta a mim. Curiosa criatura tu és.

Lúmia correu, como nunca havia corrido. Acreditou, após um tempo que não saberia mensurar, livrar-se da presença opressora e em um veio d'água ajoelhou-se, exaurida. Ainda distante do monastério, acreditava ter fugido para a direção oposta dentro da mata, mas havia algo a mais em sua mente.

Em seu espírito.

... aqueles que espreitam nas sombras... — Trouxera da garganta a oração que começara nos pensamentos, buscando clarear a influência que sobre ela recaia. — ... e no medo como bestas sanguinárias... — Ficara ofegante, vacilante. — ... aqueles que perseguem, iludem e assassinam os solitários... — Conforme a prece avançava, a excitação também, lhe atrapalhando de convocar as palavras finais — ... aqueles que rasgam e devoram a carne dos indefesos...

Karnácia: Condessa ProfanaOnde histórias criam vida. Descubra agora