Capítulo Cinco

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O corredor da escola parecia um lugar para uma gigantesca guerra interior. 
  Já se sentiu deslocado andando cercado de pessoas que te passam algum tipo de insegurança? 
Era assim todas as manhãs, enquanto eu ia em direção a sala de aula. Enquanto no corredor via todos os tipos de grupos sociais, os que jogam, os que gostam de estudar, os que só falam de futebol, os casais, as garotas que contavam quantos garotos haviam pego na festa passada. E no meio de tudo aquilo lá estava eu.
Eu era aquele deslocado, por muito tempo havia sido uma opção própria, nunca me senti bem sendo próximo de tantas pessoas, tanto que durante todo o fundamental meus amigos foram apenas Pedro e Carlos, aparecendo um ou outro as vezes que chegava a ter um pouco mais de afinidade.
Mas não passava disso, e depois que todos descobriram do TOC, algo que era uma opção para mim acabou se tornado algo inevitável. Afinal todos amam estar sozinhos, mas ninguém gosta de se sentir sozinho. 
A realidade é que comecei a desenvolver o TOC muito antes dele vir a tona, existe todo um caminho sombrio a se percorrer antes de você
se aceitar com o transtorno, ou até mesmo ir à um médico.
Odeio me recordar de como tudo começou, não acho que normalmente as pessoas precisem passar por algum trauma para terem algo, mas acho que no meu caso… Bem… Acho melhor não falar muito sobre isso.
Eu andava pelo corredor, com a cabeça nas nuvens e ao mesmo tempo receoso passando entre vários adolescentes com os hormônios a flor da pele, quando alguém vindo na direção contrária carregando vários livros esbarrou em mim e derrubou todos os livros.
— Me desculpe, eu estava com pressa! — Disse a outra pessoa enquanto coçava o nariz, um garoto baixo do primeiro ano do ensino médio, seu rosto era cheio de espinhas e cravos, ele usava óculos e era um pouco zaroio. — Me ajude a pegar os livros, amigo? — Ele colocou a mão em meu braço.
Nesse exato momento meu cérebro desligou, ele ficou em um modo avião, minha vontade era gritar, explodir e demonstrar minha total insatisfação por ele ter me tocado.
  O toque. Deveria ser algo tão natural, afinal quem nunca tocou em outra pessoa por mero afeto? Mas aquilo me causava uma sensação tão ruim, como se eu pudesse sentir todas as bactérias da outra pessoa subindo em meu corpo e a minha única vontade era me lavar, esfregar bem o lugar onde fui tocado, o mais rápido possível. 

— Eu não tenho tempo. — Eu disse saindo rapidamente, correndo até o banheiro.
Enquanto corria ouvi alguns xingamentos por parte do garoto. Eu vi que havia sido grosseiro, não me orgulho disso, mas foi como se fosse um instinto, que me obrigasse a agir daquela maneira. Era como se meu cérebro entrasse realmente em um modo avião, onde ele mandava, e as únicas palavras que ele conheciam era: "NÃO DEIXE NINGUÉM TE TOCAR, USE ÁLCOOL EM GEL, NÃO EMPRESTE SUAS COISAS, TOME CINCO BANHOS POR DIA" e por aí vai, era como se ele tivesse vida própria, e me comandasse.
Fui até o banheiro e tranquei a porta, fui até a torneira e comecei a lavar o meu braço insistentemente, esfregando-a com força, minha respiração estava ofegante, eu sentia meu coração acelerado, eu sabia, não iria mais aguentar muito tempo na escola, o ato de se socializar não funcionava comigo.
Após três minutos, — Sim, eu contei. — eu me senti realmente limpo, aliviado me olhei no espelho. Observei meus cabelos negros para cima, como se fossem um topete, encarei meus olhos da mesma cor do cabelo, e meu bigode que crescia. Não me considerava feio por mais que fosse inseguro, apenas nunca me considerava suficiente para alguém. 

Após todo o ritual comum de pegar papel higiênico para sair do banheiro fui até a sala de química — A professora de Biologia iria usa-la naquela aula.
Entrei atrasado e todos me olharam, Pedro havia faltado aquele dia, o que me fazia ficar mais ansioso estando sozinho ali.
— Licença... — Eu disse ao entrar, tirando a atenção de todos que prestavam atenção na professora, que falava algo sobre o sistema digestivo das rãs.
Me sentei na única cadeira que estava sobrando, a sala de química era basicamente um lugar com uma gigante mesa, onde dava para todos os alunos sentarem ao redor dela. 
Novamente enquanto tentava prestar atenção na aula comecei a sentir os mesmos desconfortos que havia sentido no corredor.
Até que olhei para o lado contrário de onde eu estava, vi que estava Carlos, ele cochichava algo com Mateus e em algumas horas me encarava.
Mateus era ex namorado de Amanda, por algum motivo logo os dois acabaram ficando bastante próximos, era algo irônico já que Carlos sempre foi afim da garota. O garoto era um menor infrator completo, certa vez foi pego pela polícia enquanto pichava o muro da escola, o garoto foi obrigado a fazer um vídeo, pedindo desculpas a escola e todos os moradores da cidade, acrescentou falando que ele era um merda por fazer aquilo.
Abaixei a cabeça com a esperança que a aula terminasse logo e eu pudesse voltar para casa. Quando fechei os olhos veio apenas uma imagem em minha cabeça, Adhara. Eu não entendia o que havia acontecido, aquela garota era um mistério que eu queria desvendar caso eu tivesse a chance de vê-la novamente. O que havia acontecido na praia ainda era um segredo nosso, eu apenas me perguntava de onde ela era? Para onde foi depois do farol? O que fazia no mar aquela hora da noite?
Pensava em mil e uma coisas quando ouvi a professora Yanara — Que era bem bonita, aliás
— falar algo que fez meu corpo se arrepiar da cabeça aos pés. 
— Agora, como eu havia dito na aula anterior iremos dissecar uma rã! — A professora disse com certa empolgação.
Foi preciso apenas ela dizer isso para que a sala que antes estava em completo silêncio tornar-se um   completo alvoroço.
As garotas começaram a negar para a professora que fariam aquilo, Amanda inclusive, — O amor platônico de Carlos. — Começou a dar piti alegando que não faria aquilo.
Mas em poucos minutos todos se acalmaram, e quando Yanara trouxe em bandejas todos aqueles animais mortos meu estômago começou a embrulhar, enquanto o resto da sala já se divertia com o cadáver.
"Maldito Pedro." — Pensei comigo ao lembrar que ele tem pavor de rãs.
Quando foi me entregue a bandeja com o cadáver da rã, luvas e um bisturi tudo piorou. Eu não queria tocar naquilo, mesmo que fosse com luvas.
Quando a bandeja ficou em minha frente meu cérebro já começou seu inútil trabalho. "Se afaste, imagine quantas bactérias à nisso."
  Eu encarava a rã e era como se ela me encarasse, eu sabia, enquanto eu apenas a observava eu estava na defensiva, mas quando eu tivesse que abri-la, eh sabia… Eu já soava frio… Eu não iria conseguir. 
Por alguns instantes parecia só haver eu e a rã na sala, pode até parecer paranoico para você, mas imaginei a vida dela, deveria ainda estar saltando por aí a pouco, antes que fosse capturada sem culpa alguma para ser morta e dissecada por adolescentes idiotas.
  Foram apenas alguns instantes até a tortura começar, e eu conseguir sentir um cheiro forte de algo que estava apodrecendo, era um cheiro muito forte e que eu tinha certeza que vinha dela, mas parecia que ninguém mas o sentia.

Todo animal morto libera bactérias!
Todo animal morto libera bactérias!
Todo animal morto libera bactérias!

Meu cérebro começava a me torturar e eu começava a tremer com o bisturi na mão. Todos já haviam começado,  e eu a encarava, olhando-a agora não pensando em sua vida até ali, mas sentindo nojo, nojo de todas as bactérias que estavam sendo liberadas naquela sala naquele exato momento.
— Tudo bem Everton? — Yanara me olhou do outro lado da sala com um sorriso no rosto.
A encarei e engoli em seco, meu estômago embrulhava, eu estava tremendo e suando, definitivamente eu não estava bem!
— Eu… Estou bem professora!
Foi então que vi risadas vindo do outro lado da mesa, eram Carlos e Mateus.
— Posso saber do que estão rindo? — Yanara virou-se para eles.
Meu coração acelerou naquele instante, eu sabia… Sabia que estavam falando de mim, todo aquele cenário, todo aquele lugar, eu estava me sentindo sufocado ali.
— Nada professora, apenas estávamos lembrando que o Everton é uma bichinha fresca. — Mateus disse fazendo todos rirem, em seguida a professora deu-lhe uma bronca tão inofensiva, algo do tipo "não fale isso", que a encarei, vendo que parecia que ela estava segurando para não rir. — Mas é verdade, você sabia que ele pega um papel higiênico para abrir a porta do banheiro?
— Ain bactérias, bactérias,  bactérias na porta, sou uma bichona! — Carlos gritou fazendo todos rirem, e eu ficar ainda mais nervoso, tremendo e suando.
— Cale a bo… boca… — Tentei dizer sem gaguejar, uma missão que falhou antes mesmo de começar. 
— Cala você, bichinha! — Carlos disse pegando sua rã que já estava aberta e jogando em minha direção. 
A rã acertou em meu rosto, precisamente próximo a minha boca, o que me fez levantar rapidamente.
— Meu deus, alguém me ajuda! Ele me jogou um cadáver! — Eu disse me levantando rapidamente, enquanto todos riam, peguei vários lencinhos em minha mochila já indo em direção ao banheiro.
Enquanto estava indo, o mais desesperado possível, vi pessoas filmando, mas eu não me importava, eu precisava me lavar, eu conseguia sentir, era um formigamento que se espalhava pelo meu corpo, eu podia sentir as bactérias.
Carlos e Mateus me seguraram na sala por alguns instantes, enquanto todos riam e gritavam "Veado", fazendo a sala toda virar uma algazarra.
— Me deixem ir! — Eu disse puxando meu braço, com lágrimas nos olhos que não consegui segurar.
Fui correndo em direção ao banheiro, me tranquei, e lá fiquei, até bater o sino para ir embora, hora lavando meu rosto, hora sentado no chão, pensando sobre tudo que aconteceu. Sem saber que enquanto eu estava ali, o vídeo do meu surto graças a rã viralizava na internet.

O TOC DA ESTRELA (2018)Onde histórias criam vida. Descubra agora