O tempo para

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"Santa Maria mãe de Deus"...

Otávio ouvia as orações por todos os cantos. Desespero e caos total. As crianças se agarravam à barra da saia das mães. Ruídos ainda em processo de despedaçamento agoiravam as almas vivas, no entanto mortificadas, do navio Albatroz. Luccino ao seu lado, agarrado ao capitão pelo tronco que envolvia firme com seus braços.

"Rogai por nós pecadores..."

O mecânico respirava mal. O ambiente de desespero daquele naufrágio o deixava dentro dos piores pensamentos possíveis, desde o fato de que o último contato com os pais seria o de uma decepção extrema até o de que tal decepção viera de uma dádiva, aquela onde ele estava seguro naquela noite, prestes a afundar com as demais esperanças da tripulação.

"Agora e na hora de nossa morte..."

Alguém fungava por ali perto. Os dois estavam de pé enquanto o Albatroz ameaçava pender para o outro lado. Os pensamentos de Luccino igualmente oscilavam: justo eles, que embarcaram para tentar uma vida melhor a dois longe do preconceituoso povo do Vale do Café... O italiano começou a chorar. Otávio percebeu as pequenas tremulações no corpo de Luccino, este que, como o capitão sabia, era sutil até mesmo na linguagem corporal, resultado de anos de aprisionamento em si mesmo.

"Não chore, querido..." Otávio procurou lhe confortar, parando o caminho das lágrimas com o dedo indicador. "Estou aqui com você."

"Minha família, Otávio... Será possível que vou morrer marcado como a maior decepção que eles tiveram na vida?"

O capitão ponderou um instante sem nada dizer. Houve um barulho de outras partes do Albatroz rasgando, um barulho que parecia fatal e tremeu todo o navio. Otávio segurou Luccino mais forte, pressionando os olhos e sentindo o peito queimar.

"Amo você. Sabe, não é?"

E sentindo todo o corpo querer trazer à tona sua náusea advinda do pânico, Luccino engoliu em seco, não pelas palavras, mas pela forma que elas seriam recebidas assim que saíssem de sua boca... Iriam sacolejar frente àquele medo, angústia, pavor, que tomavam conta do Albatroz em plena morte. Será que chegariam intactos até o coração de Otávio?

"Amo você."

E Otávio aninhou-o perto para que nenhuma palavra escapasse ao medo. O coro de mortos continuava:

"Agora e na hora de nossa morte... Amém..."

x-x-x

Otávio acordou com a cabeça estourando de dor. Lembrou-se da sensação de quentura. Mas o corpo todo molhado. Os raios do sol o tomavam da cabeça aos pés. Do outro lado, no entanto, uma enorme sombra atrapalhava o restante da visão do espaço. Assim que tomou consciência de seu corpo, o que ocorreu de forma muito lenta tal qual quando se recupera de uma cãibra, o capitão viu que estava com roupas de cidadão comum... Do século 19.

Era uma praia, sem dúvida. Coberto de areia, não havia dúvida. Qual praia? Qual o motivo de aquelas pessoas estarem formando uma meia lua em volta dele? Não pôde observar por muito tempo. Aquela luz moderna, e, no entanto a mesma de sempre, era um veneno para seus olhos de outro século. Ele se retesou para guardá-los com o braço a tapar o sol.

"Aqui, ó."

Um homem de olhos graúdos lhe deu óculos escuros. O capitão abriu-se ao mundo novamente com cuidado, se acostumando com o conforto dos óculos. Mas enxergava tudo sob uma lente fosca.

"É melhor não tirar. Ou vai passar mal."

"Onde estou? Cadê Luccino?"

"É o quê?" O homem indagou.

Com amor, LutávioOnde histórias criam vida. Descubra agora