A vida no exército se exauria entre obediência, disciplina e repetições. Otávio não reclamava daquela rotina cansativa, apesar de também não recusar umas férias de vez em quando. Quando entrara no exército, estava consciente de suas obrigações como soldado e de que não seria nada fácil. Ouvia histórias de como era dura aquela vida, de como as pessoas saíam daquele lugar "tomando jeito". Era exatamente o que o futuro capitão desejava.
Por sorte, Brandão era um excelente coronel. Rígido, porém empático com os seus. Prezava pela firmeza de caráter e sinceridade. Otávio o admirava por seus modos corretos, um homem no qual se espelhava como modelo de vida.
Mas havia algo errado em Otávio que o fez adentrar naquele mundo muitas vezes opressor. Algo que ele considerava errado para aquele século repleto de pudores. Por isso, não reclamava. Não reclamava porque era de seu desejo passar pelo cansaço, pelo rigor, pelo ambiente viril. Quem sabe assim...
Ele afastou aqueles pensamentos enquanto, suado, entrava no chuveiro para tirar seu cansaço. Os demais soldados fizeram o mesmo. Otávio olhou para baixo, ainda a se acostumar com os seus colegas tirando a roupa na frente dele. Afinal, nenhum deles sabia o que ele era. O rapaz, com cuidado, passou a tirar as suas, reparando que os demais homens caminhavam para os chuveiros com uma divisória mínima entre cada um.
Otávio escutava as brincadeirinhas ditas masculinas. O soldado Miguel havia beijado a senhorita mais bonita do baile... Outro se encontrava prometido à uma dama que iria chegar de São Paulo... E outro, de casamento marcado, queria fazer uma noite de homens antes do casório.
"E você, Otávio?" perguntaram-lhe, e ele fez que estremeceu pela água do chuveiro em seu corpo. Otávio olhou para o companheiro ao lado, como se não tivesse atentado para o que acabara de falar.
"Eu? Está falando comigo?"
"Sim, ora! Você ainda não nos falou de nenhuma moça!"
Otávio fez-se de ofendido.
"Ah! Deve ser porque não é de sua conta!"
"Hum! Casada, então?"
"Veja se não tenho honra para cometer esse impropério! A moça é solteira. Mas não há nada sério ainda. Talvez nem nos casemos. Nós homens não somos obrigados a casar com todas que vemos pela frente."
O colega de quartel riu, dando pequenas palmadas nas costas de Otávio, coisa que o assustou. O banho prosseguiu com mais chistes, mas o foco era outro colega. Era essa a capa que o rapaz vestia: quando era questionado de alguma coisa, bastava dizer algo que queriam ouvir, algo que muitas vezes não batia com seus princípios.
Otávio vez em quando dava olhares de esguelha para os demais rapazes, admirando suas formas contornadas pela água, mas tão logo o fazia, desviava o olhar para a parede, com medo de que o corpo reagisse ao desejo torpe que sentia. Um chiste que o tirava do sério era o momento em que os homens usavam suas toalhas para bater uns nos outros, coisa comum nos vestiários do quartel. Às vezes, davam uma de íntimos e batiam nas nádegas uns dos outros, conferiam o tamanho do membro de cada soldado, e eram os novatos que especialmente sofriam com isso. Otávio já se anestesiara das troças, porém era difícil manter o autocontrole em tais situações.
No dormitório, dividindo o beliche com ninguém, - mas soubera de tal moço gago viria acompanhá-lo no quarto, um novato - sufocava uma espécie de choro à conta gotas com o travesseiro. As paredes eram finas, e embora Brandão não implicasse com essas bobagens, ele mesmo se recusava a chorar escandalosamente como uma mocinha. Perguntava-se, então, qual seria o remédio que o faria esquecer seus gostos de vez, pois a ida ao exército só o fazia penar mais.
Assim, rígido consigo mesmo, passou a exigir exercícios mais duros de Brandão, que ia percebendo sua capacidade ao mesmo tempo em que seu rigor consigo. Pedia-o para fazer pausas, Otávio as fazia, mas buscava o movimento, sempre o movimento, pois cansado não pensava tanto assim em... Gostos inapropriados. Ficava até à noite no quartel, participava de tantas atividades quanto pudesse e caía na cama, praticamente desmaiava, só para não, não pensar...
Até que os anos passaram e Otávio entendeu que aquela era sua melhor versão: a de um homem vezes egoísta, vezes competitivo, que se interessara pela amada de seu amigo - o rapaz gago - só para ter algo no que se concentrar. Tinha uma postura sisuda, embora aparvalhado, modos cavalheirescos e boa conduta perante os outros. Era querido, tinha um nome e sua honra, ele que anos atrás não passava de um soldado assustado e órfão.
Mas com a passagem do tempo, Otávio vinha se cobrando cada vez mais para se amarrar num casamento. A cobrança vinha dos colegas, da sociedade ao redor e recaía nele mesmo, frustrado por não conseguir cumprir a mínima de suas obrigações de homem. Lídia apareceu e ele usou de todo o charme para conquistá-la, a troco da tristeza do único amigo que procurava lhe entender, embora não soubesse de nada. Determinado a passar por cima de si mesmo, queria o casamento, mas não queria. Desejava o status do casamento, a fala "eu vou casar" em sua boca, mas não o ato consumado, com cerimônia e altar. O capitão levava consigo apenas o rigor no qual se metera, para dizer aos demais que vou casar com uma moça linda, vou sim. Mas nem de longe este era um de seus ideais secretos.
Ele seguiu assim com sua vida, até aquele dia onde Coronel Brandão solicitou reunião com Randolfo e ele. Chegaram à sua casa pedindo licença, mas havia uma voz diferente falando no recinto.
"Com licença, capitão." Falaram Randolfo e Otávio.
"Que bom que vocês chegaram", Levantou Brandão.
Os olhos de Otávio pousaram direto no rapaz de roupas neutras ao lado de Brandão. Era alto, postura acanhada, cabelos pretos volumosos. Otávio franziu o cenho ao sentir o peito queimando. Um incômodo.
"Vamos começar nossa reunião", Brandão disse, amigável.
"Mas porque este rapaz vai participar?", Otávio apontou para Luccino, espantado.
"Luccino... É meu assistente."
Randolfo respondeu algo, mas Otávio se concentrava nas informações e na presença daquele... Menino na sala do coronel. Seu nome era Luccino, então? Bonito... Pensou rapidamente, mas logo direcionou o pensar para algo como ele não deveria estar aqui. Mas como o próprio Otávio nunca havia o visto em todo o Vale, um lugar tão pequeno? Luccino o olhou fixo, mas logo desviou para Brandão, que o apresentava como um assistente fora do quartel. Os quatro sentaram-se para iniciar a reunião, Otávio fingindo mil motivos - algo como aquele quadro bonito na parede - para voltar os olhos ao rapaz diferente, amigo do coronel.
Luccino, assustado, mas parecendo amigável, sentou-se, ajeitou as vestes e a boina, pousou os olhos no chão e devolveu-os para Otávio, que baixou os seus, não querendo demonstrar nada do turbilhão que sentia por dentro. O capitão ficou repetindo o nome em sua mente, jogando com as sílabas. Luccino... Quem era ele? Quem de fato era ele? Sequer percebeu a presença incômoda de dona Ágata, de tanto que buscava vê-lo, desenhá-lo com as retinas. E o italiano, sem graça, coçava os ombros para buscar algo a fazer. Tão assustado, tão doce... Otávio sentia-se revirar internamente, sem poder demonstrar ou entender seus sentimentos. Porque eram perigosos... E ele faria de tudo para evitar tal perigo. Talvez nunca mais se encontrassem. Era isso! Nunca mais se encontrariam. O capitão guardou o rapaz bonito como uma fotografia em sua memória. Pois, com certeza, nunca mais na vida o veria.
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Com amor, Lutávio
Short StoryHistórias em formato de conto que criam e recriam cenas do casal #Lutávio, da novela Orgulho e Paixão. Playlist da história no spotify: encurtador.com.br/fnDLR