Ophelia,
Eu estou com tanta saudade. Sei que me escreveu há dias, mas apenas agora recebi e posso escrever-te de volta.
Não sei nem como reagir diante da notícia de que Pietro está aqui também. Meu irmão do meio. Toda nossa família aqui lutando por algo que nem entendemos direito, que não nos diz respeito nem no mais remoto contexto.
Você sabe, eu fui o irmão mais velho, sempre tentei ser exemplo dentro de casa. Éramos pobres e vivíamos do campo então eu fui o primeiro a ajudar meu pai no campo e queria que eles me vissem como alguém honesto e humilde. Não acho que errei, eles se tornaram bons garotos com nossos nomes franceses, mas será que o destino será cruel o bastante ao fazer uma mãe e um pai verem não só um, que já seria horrível, filho morrer antes deles, mas todos. Ceifados por uma guerra sem sentido e sem razão?
Eu estou sendo mórbido de novo, me perdoe. Ninguém vai morrer aqui. Mas deixe-me contar uma história para você. Somos três. Jeff, Pietro e George. George entre todos é o que mais soa inglês, mas Jeff e Pietro, somos franceses natos. Acho que nunca te contei o porquê disso antes. Meu avô por parte de pai é um imigrante francês. A coisa não estava boa na França, então ele resolveu partir para o Novo Mundo. Ver como as coisas eram lá, na terra da oportunidade. Ele queria ir para os Estados Unidos. Tomou algumas aulas de inglês, pegou toda a família e meteu em um navio.
Ninguém lhe contou, pobre coitado, é que tinha entrado no navio errado e analfabeto como era, entrou no navio onde a placa na frente dizia: Destino Inglaterra.
A viagem que deveria ter durado semanas se fez em menos de um dia. Ele saiu do barco parabenizando o comandante que deve ter olhado para ele sem entender nada. Em nenhum momento admitiu seu erro, até porque no início nem sabia o tamanho ridículo da sua gafe. Então se vangloriou por ter pego o navio certo com o capitão que sabia usar as correntes para andar muito rápido. No novo país as pessoas falavam inglês, então que diferença podia haver? Comprou suas terras e começou a plantar. Nos bares se vangloriava de sua tão distante França, até que alguém lhe disse que não estava nas Américas e sim na Inglaterra.
Coitado, ficou desolado. Para ele, era o mais burro do mundo. Se tornou uma piada no vilarejo, mas no fim deu tudo certo. Ele se estabeleceu e passou a viver tranquilamente por lá. Em sua homenagem temos nomes franceses, Pietro e eu. Eu nunca cheguei a conhecer a lenda que era meu avô.
Bom, de qualquer forma é só uma história engraçadinha. E eu te agradeço, Ophelia por me fazer pensar nela. Rir e espairecer um pouco. Acho que vou contar aos homens aqui. Não acho que alguém vai dar atenção, mas se o fizer vou ter realizado o dia se alguém sorrir. A coisa aqui não está boa e não é bonita.
Esse lugar é sujo, tomamos uma água marrom e a comida, cada dia é em menor quantidade e com um gosto pior. Nunca consigo dormir direito, não nasci para esse tipo de coisa definitivamente, querida.
A guerra parece ter se tornado mais violenta e cada vez ouvimos mais bombas, mais próximas do que nunca. Diversas vezes me joguei no chão com medo de ser atingido e os outros apenas riem de mim. Mesmo assim, o comandante Winston ainda diz que os alemães estão com medo. Não querem nos atacar diretamente e como temos ordens apenas de contra-atacar ou responder a ataques deles, ficamos parados olhando de um para o outro tremendo de frio, com fome e sede.
Os piolhos me encontraram de jeito. Acho que devo ter uns dez na cabeça. Passo o dia me coçando. Em alguns pontos, já tenho feridas feias. Como eu odeio esse lugar. E como se não bastasse os piolhos, temos ainda outra espécie por aqui. Ratos. Eles não são comuns, querida. São grandes quase como gatos e andam de um lado para o outro na maior liberdade. Suas tocas são nas paredes da trincheira. Eles comem nossa comida e a noite quando dormimos andam por cima de nós. Eu acordei ontem com pezinhos sobre meu peito e dei um tapa na coisa peluda e que voou e bateu na parede com um guincho para se esconder de novo. Que horror querida...
Jeff.
22 de novembro de 1916.
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O Revisor
Historical FictionA guerra é cruel com os homens. Tira deles o que é mais precioso. E não devolve nunca mais. Cada um tem sua preciosidade, e não importa qual seja, a guerra é capaz de pega-la, amassa-la e destruí-la como se fosse nada. Uma história de amor entre um...