Saí à tarde, logo depois do almoço. Tinha um plano, um propósito e uma ideia, além de claro o ingrediente mais importante, uma vida de uma jovem moça para arruinar. Andei, andei e andei até encontrar o que queria. Essa cidade tem propriedades labirínticas e tenho certeza que passei por uma rua onde mora um mendigo dorminhoco pelo menos três vezes. Enrolado em mantas e mais mantas tinha o rosto barbado, no entanto parecia jovem, era apenas mais um resultado da guerra, apenas um expoente, apenas um desabrigado.
Parei em um posto de gasolina e pedi para encherem uma garrafa para mim. Calma, você vai entender.
Eu estava indo para a segunda parte do plano quando algo aconteceu. Passava por uma praça pouco movimentada, quando Ophelia surgiu do outro lado, atravessando a rua. Foi imediato. Eu a reconheci no mesmo momento. Congelei, até me tocar de que ela não me conhece, não vai nem olhar para mim quando passar por mim. No primeiro momento isso até chegou a me abalar. Eu era tão próximo dela e de Jeff, de algum jeito me sentia quase como se fosse da família, mas se passasse por ela... ela nem iria olhar nos meus olhos. Não haveria o brilho de reconhecimento no seu olhar, como havia no meu. Se eu não falasse nada, não era nada para ela.
Ela estava com o cabelo escuro amarrado, usava um vestido comprido e um casaco sobre os ombros e nas mãos tinha sacolas de compras. Então, tomei uma decisão. Achando que era um pouco suspeito larguei a garrafa de gasolina no chão discretamente e andei até ela.
–Olá, precisa de ajuda com as compras? –Perguntei, tendo parecer um transeunte normal e gentil e não um maníaco que sabe exatamente quem ela é.
–Ah... –Ela falou em dúvida. Parara e me analisava de cima a baixo. Não sabia se podia confiar em mim. Foram momentos aterrorizantes para dizer o mínimo. –Se você não se importar...
–Que é isso, faço questão. –Disse eu pegando as sacolas que ela me estendeu e tomando cuidado para não suspirar de alívio.
–É muito gentil da sua parte.
–Longe disso, é um dever. –Disse eu decidido, querendo soar cavalheiresco.
Ela andava ao meu lado e um silêncio estranho decorreu enquanto deixávamos a praça para trás. Na minha cabeça pelo menos com alguns instantes de conversa eu não tinha dito nada que a fizesse cair em lágrimas, e sei que tenho a possibilidade.
–Você mora por aqui? –Perguntei, querendo desesperadamente falar com ela.
–Sim, não muito longe. –Quase respondi que sabia perfeitamente onde ela morava, mas resolvi ficar quieto.
–São muitas compras. –Disse eu inadvertidamente.
–Meu noivo. Lutou por dois anos na Grande Guerra e agora está voltando. Quero deixar a casa abastecida para quando ele chegar. –Ela disse. Sua voz era suave, mas percebi notas que ao mesmo tempo pareciam tristes e felizes.
–Claro, entendo. –Disse abalado. Foi como levar um belo soco no estomago. Resolvi me calar.
Andamos por um bom tempo, até atingir a rua da casa dela em silêncio. Eu a admirava. Tinha cabelos bonitos e uma postura reta. Paramos no portão e a entreguei as compras. Ela sorriu e agradeceu, se virou e entrou na casa. Nesse momento eu sabia que o plano B de contar a verdade não era mais um plano, era impossível. Iria fazer o plano A valer a qualquer custo, iria leva-lo até as últimas consequências, não havia mais dúvida.
Olhei para o meu relógio. Duas e meia da tarde. Era hora da primeira parte da minha ideia. Não ia ser bonita e nem divertida, mas sentia que era o que eu deveria fazer. Então lá fui eu.
P.S.: Eu voltei na praça e encontrei minha garrafa de gasolina. Aí está algo que conseguiu me impressionar. Nunca achei que a pegaria. Mas já que a tinha, parecia um sinal piscante para seguir com o que eu estava inclinado a fazer.
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O Revisor
Ficción históricaA guerra é cruel com os homens. Tira deles o que é mais precioso. E não devolve nunca mais. Cada um tem sua preciosidade, e não importa qual seja, a guerra é capaz de pega-la, amassa-la e destruí-la como se fosse nada. Uma história de amor entre um...