Ophelia,
Hoje foi um dia no mínimo intenso, querida. Um batalhão de tanques de guerra chegou até a nossa trincheira e tivemos que atacar com eles. Você já viu um desses? É uma coisa enorme, monstruosa na verdade. Dizem que saiu de um projeto baseado em um trator, mas nem olhando de todos os ângulos possíveis eu encontrei qualquer semelhança entre essa coisa grotesca e o velho trator do meu pai, vermelho, não sei se você chegou a conhece-lo.
São caixas gigantes de metal, completamente blindadas. No lugar das rodas ficam esteiras de metal, lagartas, acho que é o nome que giram para fazer o tanque avançar.
Dos lados saem apêndices com canhões na ponta. Dizem que lá dentro cabem cinco homens, mas eu não consigo sequer imaginar como. Na parte de cima fica um feixe de madeira gigante, enrolado em cordas. Pode ser jogado na frente dos tanques para cair em uma trincheira, então ele poderia passar por cima, sem cair com o nariz na trincheira.
Eles chegaram de manhã e durante a tarde estava planejado nosso ataque, entre esse tempo uma chuva torrencial nos atingiu com afinco, em fortes rajadas, aliada a um vento norte temível, que atingia com certa malícia cada cantinho onde nos abrigávamos. Em dois minutos todos estavam encharcados como pintos molhados.
Saímos das trincheiras andando atrás dos tanques para não sermos alvejados a distância. Os canhões inimigos pipocavam e as balas dos seus rifles estalavam na couraça de metal impenetrável. A chuva dera uma trégua, mas o céu era escuro e o ar pesado. Os alemães não tinham tanques, o que me impressionou, e por um instante eu me vangloriei. A guerra estava ganha. Malditas palavras.
Mais ou menos na metade da extensão da terra de ninguém, o tanque que avançava lenta, mas firmemente interrompeu o rugido do motor para soltar um miado e apagar. Lá dentro o desespero devia ser grande, do lado de fora no meio da batalha podíamos ouvir gritos cavernosos escapando de algum lugar ali dentro. O motor foi ligado de novo e do escapamento lateral que dava direto na nossa cara uma nuvem negra de diesel explodiu. O motor ligou de novo, com o dobro da potência aparentemente e as lagartas giraram com força no lugar, giravam, mas o tanque não se movia, em instante estavam cavando um buraco.
Giramos as armas nas costas, prendendo-as com o cinto e nos pusemos a empurrar o tanque sem que ninguém tivesse emitido uma ordem. Era um instinto coletivo. Fizemos força, empurrando com os braços.
Os homens cercaram o tanque, agarrando os dentes de correia das lagartas e empurrando com as mãos. Eu fiquei atrás empurrando a traseira com toda minha força. Eu sentia um movimento, uma força, mas não sentia movimento por parte do tanque. Demorou alguns bons minutos para que eu tivesse a consciência de olhar para baixo e ver com terror que até meus joelhos, minhas pernas estavam enterradas na lama. Não me importando fiz ainda mais força e o chão parecia disposto a me engolir. Era macio e escorregadio, puxando-me para baixo. Agarrei em um dente da correia e tentei me içar, mas nada feito, não tinha forças nos braços para me puxar ou para competir com o chão que continuava me empurrando para baixo.
Meu coração começou a bater mais rápido e no peito senti a respiração se intensificando. Não estava me afogando, mas ansiava por ar puro. Era angustiante, eu fazia força para mexer as pernas, mas elas estavam determinantemente presas. Olhei em volta e não conseguia ver ninguém que pudesse me ajudar. Gritar seria inútil. Eu me preparei para o fim.
De repente o tanque rugiu e uma nuvem negra atingiu meu rosto que estava bem mais para baixo. A lama gélida chegava à altura da minha cintura. Engasguei e comecei a tossir como um maluco. Minhas mãos, que continuavam agarradas aos dentes de repente começaram a se mover, e mesmo tossindo e com os olhos ardendo me segurei com toda a força que tinha naquela lagarta. O tanque desatolara e voltara a andar. A lagarta voltou a se mexer com calma, procurando um ponto firme no chão e foi me puxando lentamente. Era uma sensação libertadora. Quando a sola do meu pé bateu no chão eu quase gritei de alegria. Caí para o lado limpando o rosto e tossindo com ainda mais força. Estava melhor. Consegui abrir os olhos e corri para acompanhar o ritmo do tanque como se nada tivesse acontecido.
O tanque avançou mais um pouco, porém tínhamos ficado para trás e o impacto primário do ataque já acontecera. Quando chegamos as trincheiras inimigas, elas já eram nossas e na distância do horizonte víamos os alemães fugindo às pressas, tropeçando nos próprios pés. Eu desci para a trincheira e comecei a rir. Rolei no chão de rir. Quase morrera, mas estava vivo. Há motivo melhor para rir do que estar vivo?
Jeff.
3 de novembro de 1918.
Essa história eu inventei depois de ter lido nos jornais sobre o poderio Aliado nos tanques de guerra. Li que foram, sim, baseados em modelos mais robustos de tratores, foram implementadas, armas e lagartas para avanços mais rápidos. Mesmo assim, dizer que o tanque não traz lembrança nenhuma a Jeff do trator do seu pai era um tiro no escuro. Eu não tinha como saber se o pai de Jeff tivera um trator realmente... conseguia imaginar perfeitamente Ophelia e Jeff conversando, dias antes da partida do último sobre máquinas e Jeff dizendo "meu pai nunca teve um trator".
Independente disso eu quis arriscar. Sei que quando alguém vê algo e quer descrever normalmente traça um paralelo disso com alguma coisa que lhe vem na memória e foi o que tentei fazer, porém, sem saber do que a pessoa que fala se lembra de verdade.
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O Revisor
Historical FictionA guerra é cruel com os homens. Tira deles o que é mais precioso. E não devolve nunca mais. Cada um tem sua preciosidade, e não importa qual seja, a guerra é capaz de pega-la, amassa-la e destruí-la como se fosse nada. Uma história de amor entre um...