Capítulo 32

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Ophelia,

Você não vai acreditar no que aconteceu. Foi hoje, durante a manhã. Eu dormia, coisa rara por aqui. O hospital estava mais tranquilo ontem à noite. Não sei o que houve e consegui dormir com relativa tranquilidade, isso quer dizer mais do que algumas horas entrecortadas por sonhos confusos e aterrorizantes. Aliás, antes de dar prosseguimento, meus sonhos são algo que me preocupam em alguma escala. Sonho com os campos de batalha e sonho em estar neles. Estou ferido de alguma forma. São quase todos iguais. Eu sinto que vou morrer, mas não é uma bala ou uma bomba que me atingem, é uma criatura negra e grande que brota da terra na minha frente com um manto preto rasgado. Ela estende a mão também negra como carvão e estica um dedo esquelético na minha direção, então toca minha testa e eu caio para trás morto, acordando do sonho na mesma hora.

É só isso que consigo captar. Um impulso estranho e visual. Não tenho a impressão de ouvir nada nem cheirar nada. Temo estar sonhando com a Morte, e isso não pode ser um bom sinal.

Bom, essa manhã eu acordei sem gritar com o pesadelo, acordei ao notar uma presença ao meu lado, parada em pé na lateral da cama. A pessoa não me tocara nem nada assim, mas sua presença foi pressentida por mim, em alguma instância.

Abri os olhos lentamente, mas continuava sonhando. Na minha frente estava um Tim sorridente. A pele escura e os dentes brancos, a pessoa que eu achava que nunca mais veria. Meus olhos se arregalaram e minha boca abriu e fechou, como se a língua tivesse simplesmente desfalecido ali dentro.

–Olá. –Disse ele.

Minha cabeça embolou completamente e eu balbuciei alguma coisa sem sentido.

Ele sorriu novamente.

–Como você vai, meu amigo? –Perguntou ele.

Um mínimo de raciocínio voltara as minhas faculdades e eu consegui responder.

–Vou indo. Os desgraçados me acertaram de jeito.

–Gás?

–É.

–Você sumiu e me deixou. –Disse ele.

–Desculpe.

–Soube que foi punido por causa que salvou um alemão.

–Klaus. –Falei.

–Ah, claro. –Disse ele entendendo tudo. –Winston o expulsou?

–Com toda a violência que essa simples palavra implica.

–Sinto muito.

–Eu estava preocupado com você. O que aconteceu no front?

–O gás veio e todos conseguiram fugir.

De repente um pressentimento ruim me atingiu.

–Por que você está aqui?

–Estou indo para casa.

–Foi dispensado?

Ele assentiu e disse:

–Com toda a glória de um bom chute na bunda.

–Fico feliz por você.

–Eu também. Trate de melhorar, Ophelia merece tê-lo em casa, não amarrado aqui.

Assenti, você, querida, sabe tão bem disso como eu ou Tim.

–Vai dizer a ela o que eu lhe disse naquele dia?

–Palavra de honra...

...para Tim e para você, querida. Não me deixe esquecer disso.

–Bom, eu devo ir, senão meu trem saí sem mim e só posso partir amanhã e desconfio que não tem espaço suficiente para mim nessa sua cama.

–Receio que não. –Disse sorrindo e ergui a mão para cumprimenta-lo.

A mão que se ergueu para apertar a minha me apavorou.

No lugar da mão de Tim, havia uma prótese de madeira. Tinha o formato de uma mão, os dedos, cada falange um pedaço de madeira diferente, conectados por um tubo de aço duro. Ele não apertou minha mão, apenas a estendeu com um olhar triste nos olhos.

–Eu sinto muito. –Disse.

–Está tudo bem, pelo menos agora posso voltar para minha família.

–Como isso foi acontecer? –Perguntei ignorando seu positivismo forçado.

–Haviam minas na terra de ninguém, no final das contas. –Disse ele baixinho. –Fui resgatado e suturaram o ferimento com uma barra de ferro ardente. Isso me causou uma semana de febre de 40° por causa da infecção, mas me salvou porque manteve o que restava de sangue no meu corpo.

–Meu Deus... dói? –Perguntei depois de um segundo constrangedor de silencio.

–Um pouco. Agora parece anestesiado. Irrita um pouco não conseguir mexer os dedos, mas eu vou aprender a me virar.

–Isso vai até o...

–Cotovelo. –Falou ele confirmando com a cabeça.

–Eu sinto muito.

–Não sinta. Fique feliz por mim.

Eu cobri a mão dele com as minhas duas e apertei.

–Eu desejo-lhe toda a sorte do mundo, Tim. É um homem valioso e vai ser um pai bom para a pequena Amelia.

Ele assentiu e baixou a cabeça.

–Obrigado, Jeff. Significa muito para mim.

Ninguém que veio da guerra está inteiro, parte de nós ficou lá. Estamos feridos e nem todos os machucados são visíveis.

Ele então virou as costas e foi andando pelo hospital na direção da porta de saída. Acompanhei-o com o olhar. Estava feliz em poder vê-lo e em saber que estava deixando aquele inferno, mas sentia-me triste por ele. Perder a mão. Nem imagino por quanta dor ele passou. E então como se fossem ondas senti uma culpa terrível que me consumiu a tarde toda.

Tenho certeza que não era sua intenção, mas o que dissera era verdade. Eu o tinha largado. Largado para salvar um alemão que nem pensava mais onde estava ou como estava. E meu melhor amigo tinha perdido um braço em uma mina. Se tivesse ficado lá e ignorado Klaus, poderia ter alterado o que aconteceu? Talvez até mesmo salvado Tim?

Eu me perguntei tudo isso, me culpando e me perguntando se tinha realmente falhado com Tim. Na sua expressão não havia nada que indicasse que ele se ressentia comigo nem nada assim, mas algumas pessoas conseguem esconder isso. Sinto medo de ele ser assim.

Jeff.

17 de novembro de 1917.

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