Capítulo 31

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Ophelia,

Estou em Paris. Fui transferido porque segundo o que me informaram não era um paciente rápido. Não morria e nem melhorava nunca, então não podia ocupar uma cama no hospital de campanha que é justamente para pacientes que vão ficar pouco tempo por lá.

Não é como se eu pudesse levantar e protestar então aceitei e parti. Me levaram de maca até uma ambulância que na cidade busca um ferido e aqui levava três pessoas acamadas e duas sentadas para Paris. A viagem foi um inferno. Era escuro e quente na parte de trás, onde uma enfermeira pequena e velha tentava ajudar todo mundo, o motorista parecia um caçador de crateras passando por cima de todos os buracos que encontrava na estrada. Acho que nem mesmo a terra de ninguém é assim tão acidentada quanto o caminho que ele escolheu. A ambulância balançava precariamente de um lado para o outro e dava solavancos que me fazia sentir cada ferimento no meu corpo.

O homem deitado ao meu lado gemia sem parar. Não sei o que ele tinha, mas estava muito mal.

A viagem levou algo entre seis e oito horas e nem por um segundo eu dormi. A única coisa que posso agradecer a Deus nos últimos dias é que não tenho tido febre. Nada em mim infeccionou, o que é uma sorte incrível e quase um milagre naquele hospital de campanha, onde as paredes parecem grandes infecções.

Eu não sei onde em Paris exatamente eu estou, só sei que o hospital agora se parece mais com algo razoável. Novamente ninguém tem um quarto. Estamos em um salão grande, com o teto baixo, as paredes pintadas de branco. Pelo menos o medo de uma chuva fazer o teto desabar foi sanado. Há mais enfermeiras agora e elas estão sempre correndo de um lado para o outro. Algumas são muito jovens, o que me faz pensar que aqui é uma universidade, e elas que cuidam dos feridos são estudantes de medicina muito jovens.

Bom, de qualquer forma, o "ambiente" de cada paciente é dividido por finas paredes que parecem mais biombos do que qualquer outra coisa. O lugar é muito mais limpo, mas eu não sei quando vou poder sair daqui. Diante da minha cama, no outro lado do "corredor", há uma janela larga e grande. Dela consigo enxergar prédios infinitos, ruas movimentadas, no fundo, na direita, o imenso jardim sobre o qual está a Torre Eiffel essa aberração de ferro. Não sei porque está aqui, deveriam ter tirado no fim do concurso de engenharia.

De toda forma, eu raramente consigo dormir atualmente e fico olhando pela janela como um insone. Dizem que Paris é a cidade das luzes, meu amor. Mas estou sozinho, então ela parece apagada, só se iluminará de verdade quanto você estiver aqui comigo na nossa lua de mel. Então ela se encherá de luzes e de beleza, pois saberá que sua rainha está passando pelas suas ruas.

Quem escreve para mim agora é Donald. Um estudante de medicina, que nas horas vagas, que são raras, devo dizer, escreve voluntariamente para quem não pode ou não sabe. Você não está se lembrando do nome, não é Ophelia. Donald Dumper. Lembra agora? Claro que sim. Ele é de Shewsbury também. Um dos meus melhores amigos de infância, e agora está aqui cuidando de mim. Você tem que lembrar dele, foi ele que me apresentou você. Morava do lado da casa para onde você se mudou e levou a todos nós para conhecer a nova vizinha. Contei a ele sobre a nossa relação e ele ficou feliz, disse que até certo ponto já desconfiava que éramos feitos um para o outro. Tenho que agradecer a ele, não sabe o bem que fez na minha vida me apresentando a você, afinal menos de um ano depois que você chegou, ele teve que se mudar abruptamente. Ninguém sabia o porquê da mudança repentina na época, só agora reencontrando-o aqui em Paris que fui descobrir.

–Minha vó por parte de mãe estava muito doente aqui na França, em Lyon, na verdade. Então nos mudamos para cá. Meus pais começaram a trabalhar e eu tinha que cuidar dela. Aprendi a gostar de cuidar dela e fui estudar medicina quando acabei a escola. Sempre pensava nela. "Estou estudando para cuidar melhor dela e saber atender o que ela precisar". –Disse.

Bom, acabou que um dia antes de receber o diploma, a avó faleceu, mas ele estava formado e desde então fez estágio e começou a trabalhar na seção de geriatria dos hospitais da França. É um dos melhores enfermeiros do país nesse sentido.

–A guerra veio e necessitou da minha ajuda. Larguei meus velhinhos para cuidar dos pedaços de homens que chegavam aqui.

Veja como é o destino querida. Um bom amigo que sumiu no mundo há mais de, sei lá, vinte anos? E agora eu o reencontro aqui, nessa situação terrível.

Já estou aqui há cinco dias, e nos quatro primeiros eu estava bastante insuportável e tenho noção disso. Estava frustrado com minha situação. Odiava estar todo machucado e não melhorar nunca, mas então algo que eu vi ontem mexeu com a minha cabeça sobre isso e eu senti que tenho que aceitar como estou e tentar melhorar a todo custo.

Eu estava sentado na cama olhando para o nada, quando dois homens passaram carregando um corpo sobre uma maca de pano. O rapaz era mais jovem do que eu e estava completamente queimado. Sua pele tinha feridas enormes e muito feias, ele estava com marcas de fuligem. Deitado na maca, seu rosto era uma mera lembrança do que devia ser antes. Meu coração se apertou ao ver aquilo, até porque sabia o que era e não era nada bonito. Tinha ouvido que os alemães usavam lança-chamas, mas não tinha acreditado logo, agora sei que é uma terrível verdade.

Ele balbuciava alguma coisa incompreensível, mas sua dor era tão visível quanto o sol durante a noite. Acho que me tornei muito mais humilde depois disso. Sei que o que me segura aqui é péssimo. Mas a minha dor não chega a um décimo da daquele rapaz, além disso todos os meus membros estão aqui, e é só questão de tempo para que eu possa voltar para você querida.

Jeff.

25 de outubro de 1917.

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