Ophelia,
Eu sinto muito, mas não tive, opção, não tive sequer tempo para abrir a boca e dizer a primeira letra de um protesto que no fundo sabia que seria inútil. A guerra tem muito disso. Alguém importante fala algo que deve ser seguido por todos os outros, as ordens são transmitidas e se alguém não concordar não faz a menor diferença xingar para o céu ou reclamar com o transmissor das ordens. Você precisa reclamar com a fonte, se quiser alguma esperança de mudança, mas essas pessoas são praticamente inacessíveis.
É como se fossemos estátuas de pedra levadas de um lado para outro. Tudo que podemos protestar não faz diferença, pois a resposta vai sempre ser: "Desculpe, mas são ordens de cima". Ou qualquer merda que faça as vezes disso.
Assim que conseguia me sustentar de pé, fui enviado a uma base do exército em Paris. Ainda estava fraco e pálido, não duvido que estivesse febril, mas com gente sem perna por todo lado, a febre é o mesmo problema que roupas molhadas na chuva. Me deram um uniforme e armas. Isso poderia ser apenas trivialidade prática, mas para mim, foi um choque funcional. Eram idênticas as que eu usava antes, na primeira vez. O uniforme cinza, o fuzil idêntico, com um pente de balas extra, granadas, um capacete duro.
Por mais que isso soe estúpido no hospital, um ambiente terrível, mas não desesperador nós criávamos uma identidade. Criávamos uma persona, talvez? Tudo bem que não fossemos chamados pelo nome... Não erámos Jeff, Jonh ou Robert e sim o cara do gás, o homem sem perna, o garoto sem olho... Por mais que não conversamos e nossa relação fosse impessoal ao extremo, acho que havia um senso de comunidade mínimo. Mas aqui...? Aqui somos os mesmos, nada vai nos diferenciar, como da primeira vez. As mesmas roupas, o mesmo medo, a mesma nulidade de valor para alguém.
Não havia uma marquinha na arma ou em qualquer coisa que me dissessem que essas não eram as armas que eu usava antes. Todos são iguais aqui. Tenho certeza que se pudesse erguer o pescoço bem alto veria dezenas de formigas andando de um lado para o outro, todos apressados, mas sem um traço de personalidade. São todos iguaizinhos, idênticos. É o tipo de coisa que torna mais fácil para um general liderar homens. Poucos deles sabem o nome de algum dos seus soldados, para eles ninguém é ninguém. Se um homem morrer outro virá o substituir. Vestido do mesmo jeito com a mesma arma, a mesma pessoa, porque o que importa de verdade são números.
Um general nunca lidera dois John(s), os irmãos Richards, o senhor Brad, o jovem Matt... comandam apenas, vinte soldados, dez artilheiros... Isso é estúpido e deixa essa guerra ainda menos humana. Nenhum soldado se impacta quando alguém vem lhe avisar que um soldado morreu em batalha. Dizem: "é, essas coisas acontecem, estamos aqui para isso, era um homem valoroso, corajoso, mas lutou bravamente pela mãe Inglaterra"; nem sequer pensam em qualquer coisa como: "O Jofrey? Coitado, era um bom rapaz, deixou a mãe em casa sozinha para vir lutar...".
Eu me pergunto por que alguém não vira para eles e diz com toda a sinceridade: "Ei, comandante, no nosso ataque de mais cedo Phillipe morreu. Veio de York, o coitado. Tinha duas filhas e uma mulher esperando em casa." Tenho certeza que pelo menos alguns seriam impactados por isso, muitos não, mas um ou outro... não podem ser todos monstros. Para mim as roupas ajudam. Eles não estão vendo aquele rapaz de verde que tem duas filhas, o homem de vermelho que deixou a noiva e o garoto de azul que largou a mãe em casa para lutar. Estão vendo soldados. Nada nos diferencia, nada, além dos quilômetros que conquistamos nos dá algum tipo de valor que valha de algo, e mesmo isso é completamente esquecido quando chega uma maldita "ordem de cima".
Bom, depois de sair da base fomos de trem até uma cidade na fronteira da França e de lá tivemos que andar. Foi horrível. O sol estava lá, mas está começando a esfriar e o chã está um pouco molhado. Logo os pés estavam úmidos e eu me sentia gripado, com o nariz fechando e espirrando de tempos em tempos. A maioria dos homens do meu batalhão tinham algum tipo de problema, ou assim como eu vinham do hospital. Um rapaz não enxergava direito. Eu disse para mim mesmo ficar bem longe dele na hora de atacar, não sei o quanto ele consegue discernir entre mim e um alemão na distância com seus olhos, ficou assim por causa do gás. Outro homem tinha ataduras na barriga e passou o dia vomitando, como se marcasse território de tempos em tempos. Ele estava tão mal que em pouco tempo não tinha o que vomitar e expelia uma gosma branca amarelada com um fedor asqueroso. Um terceiro desmaiou com o esforço e foi preciso leva-lo de maca um bom pedaço. Ninguém pensou por um segundo em mandar o coitado de volta, ele iria melhorar e lutaria, ainda naquele dia, se fosse preciso. Finalmente reparei em um rapaz que andava devagar, mancando da perna esquerda. Andava olhando para baixo e notei com horror que sua mão estava substituída por um gancho. Minha cabeça travou como se as engrenagens tivessem ficado presas em alguma coisa. Ele não tinha uma mão de madeira como Tim, tinha um gancho e eu acho que sei porquê. Com um gancho ele pode colocar a ponta no gatilho e atirar. É prático, mas não deixa de ser um tanto quanto assustador. Também me fez pensar que se Tim ainda estivesse na França provavelmente ele teria um gancho daqueles e estaria marchando.
Mas como boas pessoas indo para o inferno cantávamos e contávamos piada. Não é como se alguém fosse cantor ou comediante nato, mas ajudava a passar o tempo. Ninguém falava sobre a tão distante miragem confusa e impossível chamada casa. Isso nos deprimiria. A camaradagem em uma situação assim é uma benção e uma desgraça ao mesmo tempo, porque nos afeiçoamos a quem podemos perder. Não tenho mais companheiros de armas, nem conhecidos. Somos amigos já, e isso é extremamente triste. Quem escreve, por mim, aliás, é Lacroilate. O único entre nós todos que sabe escrever alguma coisa. Escreve para todo mundo a propósito.
Voltar as trincheiras foi um pouco desconfortável. Algum dos momentos mais difíceis da minha vida recente foram passados em uma dessas, e revisitar esse cenário tão cedo me deixou um pouco nervoso. Independente disso, tudo continua como mora na minha memória. Pouco decorado, monocromático, depressivo, sujo, gelado e desconfortável. Triste vida.
Jeff.
2 de outubro de 1918.
Se você disse que minha descrição sobre a guerra é um pouco romântica demais vou acreditar, mas de uma forma ou de outra, você deve dar o braço a torcer que ao menos crível, o relato está.
O fluxo de cartas aumentou muito e é triste ver como a maioria ganhou um tom mais mórbido e triste, como se todas fossem de despedida. No início da guerra ainda em 1914, os homens achavam que a guerra seria decidida em poucos meses. Que poderiam voltar para colher o que plantaram na outra estação. Hoje sei que estão errados, mas sinto um impulso estranho de querer que essa merda toda não acabe, o que é contrário ao que a maioria das pessoas poderia sequer imaginar. Decididamente. O meu caso é diferente do da maioria das pessoas pelo simples motivo de que ao invés de ansiar pela volta de alguém vivo, eu preciso matar alguém que já está morto e enquanto isso durar, posso manter sua voz viva.
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O Revisor
Ficción históricaA guerra é cruel com os homens. Tira deles o que é mais precioso. E não devolve nunca mais. Cada um tem sua preciosidade, e não importa qual seja, a guerra é capaz de pega-la, amassa-la e destruí-la como se fosse nada. Uma história de amor entre um...