Ophelia,
Acho que descobri nosso maior inimigo. Não são os alemães, é o tédio. Passamos o dia sem fazer nada. É angustiante. Os homens estão deitados no barro olhando para o nada. De vez em quando recebemos jornais de vários dias atrás, mas nada nos impressiona muito e poucos sabem ler. Jogamos carta a maior parte do tempo, apostando coisas imbecis como qualquer moeda que tenhamos conosco ou até mesmo uma colher do próximo jantar, que nas atuais circunstâncias é praticamente a maior preciosidade de que dispomos.
Ninguém gosta muito de conversar. Acho que a maioria aqui compreendeu que não importa muito a sua vida no passado. Se você tinha muito dinheiro ou não, se era casado, viúvo ou solteiro, se tinha filhos ou não... se está aqui, está tão mal quanto os outros, e tem a mesma chance de morrer. É mórbido, sim, mas é a verdade. Ninguém sabe nada sobre os outros, mas ninguém se dá ao trabalho de perguntar. Caído no campo de batalha, morto você tem o mesmo peso que qualquer um, merece a mesma cova fedorenta e a mesma benção apressada, sinto dizer.
Um dos homens que está aqui conosco, Jofrey, é barbeiro e conseguiu uma navalha com o comandante Winston, então ontem cortou o cabelo e fez a barba de todos os que queriam de graça. O Tim raspou a cabeça de novo e eu que estava com o cabelo caindo por cima das orelhas (um tanto cômico) e a barba também estava muito maior do que eu já havia deixado. Mas agora estou careca. Carequinha. Consegue imaginar isso, querida? Hahaha, estou hilário, parecendo um passarinho que acabou de nascer, com a cabeça raspada. Pelo menos isso ajudou um pouco com a coisa dos piolhos.
E deixe-me contar qual foi a melhor da semana, querida... Tim sabe tocar uma gaita de boca. Diga a ela, Tim.
Pois é, sei mesmo...
Não só sabe, ele é um mestre, querida. Sabe tocar um monte de música na sua gaitinha. Mas tinha vergonha! Vergonha! Consegue imaginar isso? Estou há semanas me aliviando na frente dele e ele tinha vergonha de saber tocar gaita. Pegamos ele tocando quando o sol nem tinha nascido há alguns dias e desde então depois do jantar ele toca alguma coisa para nós. Está até me ensinando. E disse que levo o jeito. Olhe nossa diversão, querida... esse lugar destrói o mais forte dos homens e esfarela o mais fraco, temo não ser nenhum dos dois.
Mas o Tim é bom.
–Tocar me lembra da minha garota.
–Sua garota? –Olhei para ele. Pareceu ainda mais jovem diante do meu olhar.
–Minha garotinha. Amelia.
Ophelia, eu olhei no fundo dos olhos verdes daquele garoto loiro e perguntei:
–Você tem uma filha?
–Tenho. –Respondeu ele.
Minha cabeça explodiu e meu queixo caiu no chão de surpresa. Ophelia, ele é cinco anos mais novo do que eu, como pode ter uma filha?
–Você é casado?
–Sou, minha mulher me espera em Bristol.
–São casados há quanto tempo? –Perguntei completamente descrente.
–Cinco anos. Casei-me com vinte.
–E quantos anos tem sua garotinha?
–Quatro.
Tim Laveki mudou diante dos meus olhos, querida. Aquele rapaz amigável que eu conheci em Manchester enquanto íamos treinar em Londres para nos preparar para esse horror cresceu diante de mim. Não era mais um garoto, é um homem, querida.
Um homem que deixou uma família. Sua mulher, sua filha. Coloquei minhas lamentações sobre os pés. Se estou sofrendo ao deixar-te Ophelia, imagine ele que deixou suas amadas em casa para vir lutar e nunca tinha falado nada.
Decidi que a partir dali... quero dizer, prometi a partir daquele momento que morreria na guerra por esse homem, para salva-lo. Com um coração tão bom, sincero... não seria capaz de ver uma vida como a dele se acabar em dor e sofrimento nessa antessala do inferno.
Ele mostrou-me uma foto e é uma menininha adorável, com cabelo encaracolado e um sorriso lindo. Uma anjinha. Tem cinco anos.
–Ela é muito inteligente. –Disse. Eu não sei como ele teve coragem de larga-la.
Olha aí, estou fazendo-o chorar enquanto escreve para você. Ah, e Ophelia fique avisada que quando eu voltar nós vamos nos casar e ter uma dúzia de crianças. Oh, amor sinto tanto sua falta.
Fui destacado para uma missão no dia de amanhã, não sei qual vai ser, vamos eu, Tim e mais dois homens, além do capitão Winston. Não nos disseram o que teremos que fazer, e apesar de temer ser alguma investida suicida, estou quase empolgado. Quero fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Não suporto mais ficar encarando a parede da trincheira contando os segundos para te ver novamente.
Jeff.
30 de novembro de 1916.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Revisor
Historical FictionA guerra é cruel com os homens. Tira deles o que é mais precioso. E não devolve nunca mais. Cada um tem sua preciosidade, e não importa qual seja, a guerra é capaz de pega-la, amassa-la e destruí-la como se fosse nada. Uma história de amor entre um...