Capítulo dois - Segundo dia de sorte

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     Será que é normal sempre que eu estiver trabalhando ou estiver sozinha, lembrar daquela noite horrível? Será que eu preciso do meu pai, que é psicólogo, para poder esquecer ou evitar trazer aquelas lembranças de volta?
   Já tive dois momentos traumatizantes na minha vida. A primeira vez, eu caí de uma piscina quando tinha cinco anos, foi tão ruim que evitei piscinas durante dois anos. Felizmente, meu pai me ajudou a superar o meu medo. E a segunda vez foi ontem.
   Sacudo a minha cabeça para afastar esses pensamentos.
   — Ave! Você está bem? — Jake toca o meu ombro, me tirando dos meus devaneios.
   — Estou sim. O que foi?
   — Você não ouviu o que eu disse. Já é hora do almoço.
   — Eu estava distraída. Almoçamos juntos? — Olho para ele.
   — Infelizmente não. Você sabe que eu tenho que comprar o presente da Melissa.
   — Vosso aniversário? — Faço cara feia.
   — Sim. Não se preocupe que daqui a pouco você encontra alguém.
   — Idiota! — Reviro os olhos e levanto da minha mesa. Pego na minha bolsa. — Você sabe que eu só me importo com a minha profissão.
   — Vou fingir que acredito. — Ele ri.
   Saio da sala revirando os olhos e sigo para o elevador. Entro e verifico a minha bolsa. Não trouxe a minha maquiagem, mas trouxe o meu amuleto da sorte, um ursinho de prata que o meu pai deu para mim. Ontem eu tinha esquecido, deve ser por isso que aconteceu aquela tragédia.
   Antes mesmo das portas do elevador se fecharem, senhor Bianchi entra pelo elevador com o seu filho, Andrew. Não sei porquê, mas reparo nas minhas roupas e no meu cabelo no espelho do elevador.
   — Temos muito que conversar. — Senhor Bianchi diz para o filho.
   — Estou ciente disso, pai. — Ele olha para mim. Desvio o olhar e aperto os lábios para não sorrir.
   — Hoje a noite, então. Por favor, não se atrase.
   — Eu tenho a certeza que sou a segunda pessoa mais pontual. Depois do senhor.
   — Não exagere! — Ele olha para mim também, quando o elevador pára no quarto andar. — E tenha um bom apetite, senhorita Sally! — Ele sai e as portas voltam a se fechar, antes mesmo de eu poder agradecer.
   — Obrigada! — Digo mesmo assim.
   — Então? — Olho para o Doutor Bianchi. — Até agora? Gosta de trabalhar aqui?
   — Quem não gosta? É uma grande empresa. — Digo.
   — Então, é um sim. — Ele olha para o celular.
   — É sim. Sim.
   — Já pensei em ficar com o seu lugar. Mas eu gosto de mais. Não que seja ruim.
   — O que isso quer dizer?
   — Eu pensei em ser advogado também. Na verdade, eu já fui.
   — Também é licenciado em Direito?
   — Claro que não! Sou doutorado em Direito.
   — Sério? Que idade você tem?
   Ele mostra uma carranca para mim, que me faz ficar encolhida no meu lugar e graças aos céus, as portas do elevador se abrem.
   — A idade certa, Avery! Fique bem! — Ele diz e sai primeiro.
   Saio também seguindo seus passos, depois saímos juntos da empresa, mas seguimos caminhos diferentes. Atravesso a estrada, depois caminho pela calçada e curvo a esquerda para encontrar o restaurante barato ao ar livre e com boa comida que descobri há três dias.
   Entro e ocupo um lugar. Tiro o meu celular da bolsa e ligo para o meu pai. Ontem não consegui conversar com eles e acho que precisam saber o que aconteceu. Se fosse eu, ia querer que me contassem.
   — Ursinha!
   — Oi, pai!
   — Finalmente ligou. Pensei que tinha esquecido que tinha pais. — Ele responde divertido.
   — Isso nunca! Eu só... aconteceu uma coisa ontem.
   — E o que aconteceu?
   — Bem, eu fui feita refém numa loja. Tive medo que...
   — Céus! Você está bem?
   — Sim, sim. Não houve nenhum arranhão. Um policial salvou a minha vida. Eu estou bem.
   — Ainda bem. Tenha muito cuidado. O mundo não é cor de rosa.
   — Eu sei disso.
   — Sabe de uma coisa? Eu sou péssimo a fazer surpresas. Comprei um apartamento para você. Mandei as chaves para a sua tia.
   — O senhor não está dizendo isso para eu me sentir melhor, não é? Porque está resultando! — Quero levantar e pular.
   — Não. Estou dizendo a verdade.
   — Muito obrigada! Eu não acredito.
   — Você está crescida. A minha bebê é agora uma mulher. — Sua voz falha.
   — Sempre vou ser a sua bebê. Eu te amo, papai!
   — Também te amo, Ursinha. Até depois.
   — Claro. Manda um abraço bem grande para a mamãe.
   — Vou fazer isso. Beijos! — Ele desliga.
   Endireito o meu cabelo e deixo o celular por cima da mesa. Estou muito feliz com essa novidade. Finalmente vou ter um espaço só meu, minha privacidade, tudo o que eu sempre quis. Melhor notícia que essa não pode haver.
   — Boa tarde, o que vai querer?
   Viro para o homem que fala comigo. Não poderia esquecer essa voz. Olho para seus olhos castanhos, sorriso deslumbrante e para sua farda de policial. Será que ele me seguiu?
   — Oi!
   — Esqueceu o meu nome? — Ele puxa uma cadeira e senta na minha mesa.
   — Não. — Esqueci sim. Sou péssima com nomes, mas ótima com rostos.
   — E qual é?
   — É... — Pensa Avery! Pensa!
   — Dean.
   — Desculpe!
   — Não faz mal. Você deve conhecer muita gente todos os dias. Eu entendo, Avery!
   Isso é para eu me sentir pior?
   — Então, você vem sempre aqui? — Digo e isso soou muito estranho. É uma das cantadas que os homens mais usam. Começo a rir e Dean me acompanha.
   — Você... — Ele está rindo.
   — Não... não foi o que eu quis dizer.
   — Eu sei. Eu entendi o sentido da pergunta. — Ele pára de rir. — E sim. Esse é o melhor restaurante que encontrei por aqui. E o mais barato.
   — É o mesmo que eu acho. — Sorrio.
   A garçonete vem até nossa mesa e fazemos o pedido. Peço uma salada russa e suco de ananás e Dean me acompanha com a salada, mas bebe Coca-Cola. Eu adoro Coca-Cola.
   Será que é o destino me dizendo alguma coisa?
   — O que você gosta de fazer? — Ele pergunta. Quer dizer, de repente ele me pergunta isso?
   — Sou uma pessoa muito chata. Eu gosto de ler, ver filmes e séries na Netflix, gosto de música e também gosto de trabalhar. — Olho para minhas mãos. Ser o centro das atenções é uma coisa estranha.
   — Eu não acho que você seja chata.
   — Você é a primeira pessoa a dizer isso. E você? O que gosta de fazer?
   — Também adoro filmes e música. Desporto nem se fala! — Ele sorri. — Mas não sou fã de leitura. Gosto também do meu trabalho, mas há sempre dias ruins, não é?
   — Como alguém pode não gostar de leitura? — Pergunto.
   — Você ficaria surpreendida.
   — Então, nunca leu um livro?
   — Livros escolares contam?
   — Eu acho que não. — Rio.
   — Não li. Quem sabe um dia desses.
   — Devia experimentar. É muito bom.
   Ficamos em silêncio até o momento em que a garçonete traz os nossos pratos. Como sem esperar nada porque estou morrendo de fome e não me importo com mais nada a não ser encher o estômago nesse momento.
   — Posso fazer uma pergunta pessoal? — Dean pergunta de repente, depois bebe a sua Coca-Cola.
   — Depende. Sobre o quê?
   — Você tem namorado?
   Eu engasgo. Não esperava essa.
   Bebo um pouco de água, e Dean parece um pouco desconfortável. Eu sou perita em passar vergonha e em machucar as pessoas. Já neguei vários pedidos de namoro na faculdade e no médio. Houve uma época que Jake me chamava de "esmagadora de corações ".
   — Desculpa! Você está bem?
   — Não.
   — Não, você não está bem ou não você não tem namorado?
   — A segunda. — Limpo a minha boca.
   — É difícil encontrar mulheres lindas solteiras. — Ele dá uma garfada na salada.
   — Não é. — Espera! Ele disse que sou linda?
   Sorrio.
   E ele também sorri.
   Conversamos mais um pouco sobre a profissão dele porque eu não quero falar sobre mim. Ser policial é um trabalho muito difícil, não é para qualquer um. E a forma como ele descreve a sensação de ajudar as pessoas, de tentar manter a segurança social dá para ver que ele é a pessoa certa para esse emprego.
   Depois do almoço, ele me acompanha até à Paradise e vai embora. E eu trabalho o resto do dia um pouco distraída. Mas dessa vez, é uma outra distração.

    Chego em casa e vou para a cozinha para falar com a minha tia. Ela está cozinhando e cantando. Beijo o seu rosto e sento na mesa. Meu tio ainda não deve ter voltado do trabalho. Normalmente, ele volta depois do jantar.
   Meus tios são casados há quinze anos e cuidam de mim desde que entrei na faculdade. Jake e eu viemos morar aqui juntos, mas ele ficou nos dormitórios e eu na casa dos meus tios. Dormitório não era para mim.
   — Boa noite, Leya!
   — Que boa disposição! O que aconteceu?
   — Não posso estar feliz por trabalhar na Paradise?
   — Será que é só isso?
   — Conheci alguém. — Digo baixinho, mas ela ouve.
   — Já não era sem tempo! — Ela ri.
   — Leya!
   — O que foi? Eu estou sendo sincera. Vinte e um anos não são vinte e um dias. Sua avó dizia sempre isso.
   — É normal a pessoa não querer ou as pessoas não me quererem.
   Ela olha para mim. — Você é linda! Tudo mundo quer você.
   — Não sei.
   — Seu pai ligou.
   — Já sei. Ele mandou as chaves do meu novo bebê.
   Ela tira as chaves do bolso do avental e me entrega. — Isso é uma grande responsabilidade!
   — Eu não sou mais criança!
   — Eu sei, senão teria fingido que perdi as chaves.
   Rio. — Ainda bem que confia em mim. Vou tomar um banho e já desço para jantar.
   — Espera, menina! Você nem diz que vai ter saudades?
   — Eu ainda não vou embora. Não vou dormir no chão. — Levanto e abraço ela. — Mas não se preocupe. Eu vou sentir saudades de você gritando para eu acordar.
   — Eu também.
   — E não se preocupe. Vai me ver sempre. Aqui também é minha casa.
   — É verdade. Agora pode ir tomar seu banho. — Ela bate na minha banda.
   — Já estou indo!
   Subo as escadas da cozinha e vou para o meu quarto tomar um banho. Essa casa vai ficar tão vazia quando eu for embora. Meu primo Morial está na faculdade de Eale, minha prima Mónica sempre fica no quarto. Tia Leya vai se sentir sozinha.

   Mais um dia de trabalho.
   Chego um pouco mais cedo e vou comprar o meu café. Esperava ver Dean, mas não o vejo. Ele deve ter muito trabalho. Seu trabalho é cansativo. Eu entendo.
   Levo o meu café comigo e entro na Paradise. Vou para o elevador que está quase se fechando, entro também e cumprimento. Respiro o cheio do meu café e sorrio. Não há nada como uma boa chávena de café pela manhã.
   Olho para o espelho do elevador e vejo o Doutor Bianchi atrás de mim, e ao seu lado, uma mulher loira que também trabalha aqui. E ela não pára de olhar para ele.
   Mantenho o olhar no meu café. Ainda estou um pouco envergonhada por causa do que aconteceu ontem.
    — Como está, senhorita Sally? — Ele pergunta de propósito porque sabe que olhei para ele.
   — Bem e o... Doutor?
   — Eu acho que estou bem.
   Silêncio consome o elevador. Dou um gole no café e tento não olhar para ele, só que parece que é uma tarefa impossível. Meus olhos encontram os seus e o jeito que ele olha para mim me faz corar. Depois ele olha para o meu vestido cor de vinho, blazer e botas compridas e depois para os meus lábios.
   As portas do elevador se abrem. A mulher loira sai e as portas se fecham novamente. Dou mais um gole no café.
   Calma, Avery!
   — Quantos anos você tem, Avery? — Ele pergunta.
   Avery de novo?
   — Desculpa?!
   — Quantos anos você tem? — Ele se aproxima de mim.
   — Se não posso saber a sua idade, porquê pode saber a minha? — Pergunto.
   — Porque você é uma boa pessoa, é educada e vai querer dizer.
   — Desculpa! É pessoal.
   Ele inclina o rosto para o lado, morde o lábio e sorri de um jeito... Eu não sei explicar, só sei que é um sorriso muito lindo. Um sorriso que faria as mulheres fazerem tudo o que ele quisesse. Inclusive eu. Ele é muito lindo. E esse sorriso... Céus! Eu simplesmente não consigo descrever.
   — Está bem. Eu digo se você disser. — Ele responde.
   — É justo. Eu tenho vinte e um anos.
   — Você é tão jovem! Deve ser ótima para ter conseguido entrar aqui.
   — Sou mesmo. Um Q.I muito avançado. Agora é a sua vez! — Aponto o queixo para ele.
   — Um Q.I. muito avançado? — Ele arqueia a sobrancelha. — Não tem motivos para mentir, não é mesmo?
   — Claro que não.
   As portas do elevador se abrem e ele não diz nada. Olho para ele. — Não tem nada a dizer?
   — Não! Eu não tenho nada a dizer.
   Saio do elevador. — Dá próxima vez, eu não vou confiar em você, Andrew!
   Ele se prepara para responder e as portas se fecham. Ainda bem porque eu não queria ouvir.

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Segundo capítulo!
O que acharam?

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