A Coisa

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Seis meses atrás...

Ela correu em passos largos, o pequeno tamanco de couro desbotado marrom soltou-se de seu pé esquerdo como se não quisesse fazer parte daquilo. Preferia passar o resto de sua mísera vida afogado no lamaçal do pântano do que compactuar com aquilo mais uma vez. Ela virou-se com rapidez notando que o calçado escapara de seu pé e deu meia volta procurando pelo tamanco. Ótimo, agora além de tudo tinha que continuar o caminho descalça esse com certeza era seu dia de sorte. Olhou para baixo na beira da água a onde pequenas ondas provocadas pelo leve vento quente do verão tremeluziam na água imunda do pântano de Atchafalaya. Ali estava o desgraçado do tamanco submerso no lamaçal. Carmen agachou-se para pegar o tamanco. Um caranguejo vermelho passou correndo por sua mão assim que ela tocou o velho tamanco, se ela estive em um bom dia teria esmagado o nojentinho com o sapato. Ao invés de fazer isso retirou a peça marrom da lama, e colocou de volta no pé descalço. Ignorou o fato de que ele estava todo sujo e enlameado, sentiu cócegas no pé ao calçá-lo, mas isso deveria servir até chegar ao seu destino. Ela não podia parar, pois o tempo era seu pior inimigo, quanto mais delegasse isso, quanto mais retardasse o processo a coisa (ela se recusava a chamar isso de outra forma, era A Coisa e pronto e acabou!) continuaria a crescer, e Oh Deus! Isso não poderia acontecer nunca...

Assim que se levantou sentiu como se a cabeça estivesse enevoada com um densa neblina, seu estomago se retesou para baixo e sentiu um desconforto dolorido. O vestido solto de verão azul e barato se ergueu com o movimento, ela o alisou para baixo e continuou a andar, nesse caso achou que deveria estar correndo com a rapidez de seus passos. Não queria ficar muito tempo de bobeira na beira do pântano, isso seria suicídio. Algum aligátor iria sentir o cheiro de sua carne quente e fazer dela sua refeição. Sabia que isso era tolice, esse não era o real motivo para correr dali, nem as milhares de fábulas que os moradores locais haviam inventado de monstros do pântano que se esgueiravam debaixo dos troncos podres das árvores durante a noite para raptar as filhas virgens dos pescadores. Tudo isso era tolice e ela sabia isso muito bem, afinal de contas tinha crescido brincando naquele lamaçal e o único monstro que conhecera em toda a sua vida vestia uma batina e entoava orações nos domingos de manhã. Ela queria sair logo dali para chegar ao seu destino o pântano lembrava a sua infância, e sua infância lembrava o inicio de seus tormentos. Ela não tinha tempo para devaneios tinha que se preparar. Ainda estava claro por de trás das arvores então não era ainda nem meio dia, porém era o último dia de lua cheia, o ultimo dia do ciclo para fazer o que fosse preciso e dar um fim na Coisa. Ela precisava se apressar e correr se fosse preciso, precisava contar mais uma vez com a sorte, uma vez mais fazer o tortuoso trajeto que vinha realizando nos últimos anos mais vezes que o seu corpo poderia aturar, não sabia como isso era possível, mas tinha que ser feito. A Coisa não podia continuar ali, mais uma vez teria que ser interrompida. Só o pensamento alarmante de demorar alguns segundos a mais, tornaria tão difícil para tirar A Coisa que estava começando a ficar enraizada, criando pequenas garras e fincando o seu lugar no mundo. E isso não poderia acontecer se o Bom Deus permitisse.

Um bom incentivo para correr era o fato de que os mosquitos a estavam comendo viva, o vestido sem mangas tornou sua pele um prato cheio para todo tipo de inseto que voava naquele lugar, ela mais batia contra si mesma para espantar os malditos do que corria. Amaldiçoando cada um deles enquanto corria pela lama. Olhou de relance para o seu braço que estava apresentando pequenos círculos roxos das mordidas. Com sorte até a noite todas iriam infeccionar. Mas era um preço baixo a ser pago pelo tratamento que estava buscando. Só de pensar na Coisa Maligna que estava ficando maior e espaçosa ela sentia vontade de gritar.

Por de trás da vegetação do pântano, entre o lamaçal e as trepadeiras verdes que faziam uma espécie de cortina natural contra invasores estava à pequena casa escondida. Carmen logo avistou a casa sob as palafitas de madeira em cima da água do pântano. Diversas vigas de madeira sustentavam a tapera do mesmo material, ao lado tinha um varal com algumas peças de roupas penduradas, uma janela improvisada fechada com a tela para evitar que os mosquitos carregassem quem quer que morasse ali dentro para fora da casa. Uma porta também fechada com o mesmo material contra os insetos que animais pequenos, ela sabia que á noite a porta de madeira era fechada. Apenas por precaução, Ninguém ousava entrar naquele lugar, ninguém era estúpido ou desesperado o suficiente para arriscar ter a perna devorada por um jacaré indo aquele casebre. Para poder atravessar á palafita que tinha uma escada de acesso a casa era preciso usar o barco. O pequeno barco de madeira estava parado na margem do córrego com o remo ao lado. Quem quer que o usasse para ir até a casa tinha que devolvê-lo a margem quando fosse embora. Menos quem morava ali dentro, Carmen sabia muito bem que a moradora da casinha nunca saia dali, as pessoas apenas iam até ela. Levavam até ela tudo o que ela precisasse. Era assim que as coisas funcionavam para Bubba desde que ela tinha largado o circo que passara por Morgan City em Louisiana. Fazia décadas que ela não saia daquela tapera desde que sua filha única decidira que morar no meio do pântano com os jacarés não era o estilo de vida que ela tinha em mente.

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