Perdi a conta de quantas vezes olhei para a tela do meu celular desde que entrei no carro da SI. Já fazem quase umas 5 horas desde que saímos da sede e o motorista não dá sinal de que estamos chegando. Não sei onde exatamente fica o quartel, mas tinha certeza que não deveria ficar em um lugar isolado da civilização. Imaginava que a cidade mais próxima estava a pouco menos de 50 quilômetros.
Pela janela, tenho a visão pouco nítida de uma rodovia. O panorama está embaçado por causa da película escura do vidro, mas também pela escuridão da noite.
A tela mostra que são pouco mais de três horas da madrugada e que a temperatura ambiente está a uns dez graus lá fora. Mesmo assim, sinto o ar condicionado do veículo ligado. O motorista parece não se importar muito com a baixa temperatura, com suas roupas de aparência quente e confortável. E eu também não sinto frio, talvez pelo fato de estar usando o casaco cinza. Ou quem sabe é mais uma dos meus "superpoderes".
Ele estava dobrado por cima de minhas roupas, provavelmente para situações como essa, e o vesti nos primeiros minutos da viagem. Notei que tinha bolsos e eu precisava de um lugar para por meu telefone, já que a roupa esportiva que me deram não tem.
Encaro o motorista na minha frente. Ele não disse nada desde que entrei. Não fez nada, na verdade. Nada além de dirigir. Ele só ficou ali, dirigindo pensativo. Não desviou o olhar para mim, nem um aceno, um bocejo, eu mal ouvi ele respirando durante todo o trajeto. Só quando eu parava para prestar atenção.
Não que eu tivesse ajudado, passei o tempo todo sem dirigir a palavra para o homem, apenas esperando o tempo passar.
Flashes de toda a história mirabolante do Projeto Y passeavam pela minha memória, criando pequenos filmes em minha cabeça. Imagens de Sharon e minha mãe na faculdade, da viagem delas, delas passeando pelos corredores da SI, das festas em família que eu nunca pude participar...
E quando as lágrimas em meus olhos se acumulavam tanto que caíam e molhavam minha roupa, eu enxugava os olhos, via quanto tempo havia passado e tentava dormir. Esse processo se repetiu muitas vezes.
E a cada vez surgiam novas imagens, que eu percebi não serem suposições. São memórias. Memórias distorcidas de uma voz melódica cantando para mim e pequenos resmungos vindos do berço que tentavam imitar, de um homem ensinando algo para um monte de bebês e que sempre arrancava uma risada minha quando me olhava, o inconfundível som de choro de uma mulher que me segurava em seus braços e a voz calma e triste de quem tentava reconfortá-la.
E mais uma vez sinto uma gota em meu braço, mais uma vez o casaco passa em meus olhos, mais uma vez ligo a tela do celular e mais uma vez tento dormir.
Aeropuerto, regreso.
A imagem de uma placa na beira de estrada chama minha atenção antes que eu feche os olhos. Regreso?
- O aeroporto ficou para trás! - Exclamo, avisando ao homem. Do jeito que me olha, parece ter entendido.
- Lo sé. - Sabe? Ele mostra um sorriso afetado em seu rosto.
- Como assim você sabe? Volte, então! - Sinto meu coração apertar, um pressentimento ruim.
- No vamos al aeropuerto. - Ele me olha pelo retrovisor, sorrindo. O brilho em seus olhos não é saudável e sua boca curvada me causa um arrepio.
- Para... para onde vamos? - Sinto o incomodo crescer em meu peito. - Se isso for uma brincadeira não tem graça. Faça o retorno. Agora!
O homem não se abala com meu tom de ordem fajuto. O medo por trás das palavras não é convincente.
- Terminaré el trabajo que empecé a dieciocho años, Quince. - Seu olhar cruza com o meu enquanto fala. Não sei se é possível, mas seus olhos ficam ainda mais negros.
Trabalho? Dezoito anos? Quince? Não. Não. Por favor, não!
- Hernando. - Ele sorri com o reconhecimento no meu sussurro.
Então o medo se apodera totalmente de mim. Ele me deu a confirmação, ele é Hernando. O homem que matou 14 crianças apenas por achar que eram perigosas. O homem que só não me matou porque fui levada embora. Porque não teve chance. Mas agora tem. Fui entregue de bandeja a ele. E de bom grado.
Meu corpo se comprime contra a janela, querendo colocar toda a distância possível entre nós, minha respiração se torna entrecortada e irregular e minhas mãos tremem ao destravar o cinto. Ação que se torna quase impossível por causa da visão embaçada pelas lágrimas que de repente se formaram em meus olhos.
Ouço sua risada debochada com minha tentativa frustrada de abrir a porta do carro. Ela está trancada por dentro.
- Não! Abre! Por favor! - Mesmo sabendo que não irá adiantar, puxo a maçaneta do carro repetidamente.
Hernando apenas se diverte com minha imagem. As lágrimas em minhas bochechas e minha voz desesperada apenas o fazem rir mais.
- Socorro! Por favor! - Ele parece ainda mais entretido me ouvindo clamar por ajuda em um local deserto.
Então de repente suas risadas cessam.
- Me estoy enojando contigo.
Mal ouço suas palavras com o som da maçaneta que ainda insisto em abrir. Como um tique nervoso irritante.
Mas então um som estranho me faz parar. Quando levanto o olhar, vejo o cano de uma arma na minha frente.
- Cállate! - Seu dedo está sob o gatilho, me ameaçando.
Apesar de ter os olhos na estrada, sei que não seria difícil para ele me acertar. A arma balança levemente com as imperfeições da estrada, deixando o gesto ainda mais amedrontador. Se sua intenção era me fazer ficar em silêncio, não conseguiu. Larguei a maçaneta, parei de gritar, mas os soluços do choro ainda permanecem. Não os consigo controlar.
- Escuchame bien. - Olho para ele. - Ahora te vas a callar hasta que yo te mande hablar, no vas a gritar, no te vas a mover y no intentará huir. ¿Me entendió?
Não consigo fazer nada mais que acenar com a cabeça, já que um "sim" sairia mais parecido com um soluço e se seguiria de um ataque de choro.
- Muy bien. - Ele guarda a pistola em um lugar que não consigo ver e volta a se concentrar na estrada.
-- x --
Meia hora depois, percebo que o carro está parando.
Minha cabeça dói por ter passado tanto tempo chorando e sinto os olhos ardidos e pesados.
Na frente, Hernando tira as chaves da ignição e confere se está tudo trancado antes de se virar e dizer:
- No te mueves.
Penso que chegamos aonde quer que ele queira me levar, mas ele desce do carro e me deixa para trás. Ainda que com dificuldade, vejo as instalações de um posto de gasolina pelo vidro do carro.
Assim que ele está longe o suficiente, finalmente tomo coragem para tentar algo.
Mas meu celular não tem sinal e nem tem nenhuma rede de internet por aqui. E a bateria não durará por muito tempo. 34%. Resolvo desligar o aparelho para poupar energia depois. O primeiro ato racional que faço em muito tempo.
Avalio o lado de fora do carro. Tem algumas pessoas do lado de fora, funcionários do posto. Ainda não vejo Hernando por perto. É a minha chance.
Assim que alguém passa do lado da janela, balanço os braços para chamar a sua atenção, sabendo que bater no vidro poderia alertar ele e faria com que voltasse antes. Mas o rapaz do outro lado não percebe minha presença. O vidro deve ser mais escuro do lado de fora, impossibilitando me ver.
Tento dizer algo para o homem, mas ele não escuta. Meu tom sai baixo demais até para quem está a poucos centímetros.
Então Hernando entra no meu campo de visão. E sinto que não tenho mais tempo. Para nada.
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Nova Família, Nova Vida
Teen FictionO que você faria se de repente sua vida virasse de cabeça para baixo? Se tivesse que mudar de casa, ganhasse uma família nova e passasse a viver em um mundo totalmente diferente do dia para a noite? ...