Pão, queijo, presunto, suco e Bianca. Foi o que me acordou no dia seguinte. A luz do sol era mais intensa do que na cortina do meu antigo quarto, mas era uma manhã fria como as de junho. Morrendo de fome, fraco e ainda mais cansado do que no dia anterior. As dores da viagem voltaram a atacar músculos que eu nem me lembrava da existência, e a doutora me acordar tão cedo serviu como um impulso na piora delas. Me cutucou às seis da manhã, sorridente e descansada, parecia mais disposta do que qualquer um de nós a encontrar Marcos, quem sabe até voltar para o novo século. Mas para mim não fazia diferença de onde ou quando estava, nada me satisfazia e ninguém nunca soube o quanto isso é ruim.
- O que está fazendo? – Gritei com ela quando abriu as cortinas.
- Te acordando.
- Está fazendo tudo errado então. – Olhei para o relógio ao lado da cama – São seis horas ainda, que nome dão pra isso? Síndrome de mamãe?
- Chamam de costume. – Ela se sentou ao meu lado e me mostrou o prato com o lanche – É uma doença nova.
- Como conseguiu a chave?
- O recepcionista tinha uma reserva.
- É claro.
Me sentei e comecei a comer. Admito que estava tudo muito bom e valeu pelo dia anterior sem comer nada. Mas não estava acostumado àquilo, como ela disse.
- Não tinha refrigerante?
- Não é nada saudável.
- Não tem cara de nutricionista, doutora.
- Eu tento.
Continuei comendo em silêncio. Apesar de querer dizer muito, não parecia certo despejar coisas idiotas como "você é linda, mas deve ouvir isso toda hora" ou " quero que os meus filhos tenham os seus olhos", o que seria uma boa cantada, mas só depois do sexto encontro como casal.
- Os outros já acordaram?
- Não, deixei um bilhete e dinheiro para eles comprarem um lanche.
- E o que dizia esse bilhete?
- Dizia que fui com você no Centro para comprar roupas novas.
- Tá de brincadeira?
- Não, por quê? – Ela riu.
- Não sou o tipo de cara que vai ao mercado fazer as compras do mês, acha que vou com você comprar roupas no Centro?
- Acho.
Ela continuou me olhando por um bom tempo e eu continuei comendo. O incrível é que essa curta conversa confirmou o quanto ficamos vulneráveis perto da pessoa que nos atrai e como ela sempre consegue o que quer de você. Quando aquilo começou a se tornar um constrangimento, terminei de tomar o suco e disse:
- Espera do lado de fora. – Suspirei, desapontado – Vou vestir meus trapos.
*
O que veio em seguida foi tão bizarro que eu poderia preencher várias páginas de um livro apenas com títulos e mais títulos de romances adolescentes que se encaixam ou representam praticamente as mesmas cenas que eu vivi. Pode parecer besteira, mas depois daquela manhã com uma mulher, que não era minha mãe, depois de tanto tempo sem ver uma, me senti como uma criança de nove anos no seu primeiro encontro com uma garotinha de seis que não sabia comer algodão doce sem sujar a cara e que, no final, conta para ela que a fada do dente não existe. Foi mais ou menos isso, então vou tentar ser rápido.
Quando deram oito horas já estávamos na terceira loja e ela não tinha escolhido nada ainda. Eu já tinha comprado três calças jeans, uma camisa do Legião Urbana, uma do Kiss, outra social preta e mais três, uma jaqueta e óculos escuros. Já estava satisfeito. Mas para ela nada era extravagante o suficiente. Desde camisetas temáticas de todos os filmes e bandas que se possa imaginar, vestidos ridículos e lindos, que ela dispensou, até boinas e chapéus. Ela desfilou com tudo que se podia vestir na loja, mas não comprava nada. Eu estava em um musical da Broadway.
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Depois de Nós
Science FictionUm grupo de quatro pessoas volta no tempo de 2005 para 1989 e, enquanto desvendam uma série de mistérios, tentam finalmente fazer as pazes com os seus passados.