Dia 30 de agosto de 1989, 21hr32

1 0 0
                                    

Quando Daniel abriu de repente os olhos, eles arderam, as pálpebras pareciam duras e pesadas demais e havia se desacostumado a luz. Mesmo assim, levantou bruscamente seu tronco da cama em que estava e inspirou fortemente, como se também não respirasse há muito tempo. "Estranho", foi o que se passou pela mente do doutor. Assim que levantou seu corpo, sentiu-se mais fraco, mas não cansado, realmente fraco e desgastado, não havia dor, mas aquele corpo não pertencia a ele, não há trinta minutos. Sentiu suas mãos formigarem, dormentes e ásperas, além de um pouco de flacidez nos braços, o mesmo ocorria com suas pernas. Tateou seu rosto sem saber ao certo o que encontravam seus dedos, mas sentiu sua barba espessa assim que suas mãos se aproximaram. Parecia desidratada, assim como o cabelo. A mesma flacidez do corpo se repetia em suas bochechas e olhos fundos, suas orelhas pareciam maiores, seus lábios estavam rachados e sua boca seca. Estava velho.

- Está tudo bem com o senhor? – Uma enfermeira, de máscara, entrou no quarto.

- Que dia é hoje?

- Dia trinta, mas...

- De agosto? – Desesperado.

- Sim, senhor, mas por que não...

- Quantas horas agora?

- 21 e 34, senhor.

- Qual o ano?

- Senhor...

- O ano?

- 1989.

- Ótimo. – Tossiu tentando se acostumar com a rouquidão – A garota que veio comigo, a Amanda....

- Ela está na sala de espera, mas não pode vir agora, não sabemos se o que tem é contagioso ou... – realmente surpresa com o novo visual do homem – o que tem.

- Eu sei o que eu tenho, mas preciso sair daqui com ela agora!

- Mas senhor...

Ele se sentiu bambo e escorregou para o chão tão depressa quanto pisou nele. Suas pernas tremiam e estavam mais finas do que nunca, os poucos pelos que restavam estavam brancos. Não se reconhecia. A enfermeira o ajudou a se reerguer.

- Senhor, por favor, espere aqui enquanto eu chamo o médico e....

- Eu sei que é difícil acreditar em mim, moça. – Tossiu mais forte – Mas eu não posso continuar aqui.

Ela olhou para os olhos do enfermo e respondeu com um sonoro "espera aqui" e se foi. Ele voltou a se sentar na cama e coçou a cabeça duas ou três vezes e aí olhou melhor para o quarto. Sua cama estava muito bagunçada, provavelmente se mexera bastante enquanto se lembrava, e tudo ali era branco, os azulejos, a cama e todas as paredes. Notou uma cadeira ao lado e um criado também, com um copo de água pela metade sobre ele. Alguém estivera ali. Abriu as gavetas do criado e ali dentro encontrou suas roupas surradas, calça jeans rasgada no joelho e camiseta preta do ACDC desbotada. Teria de sair de lá.

Vestiu o mais rápido que pôde as roupas, bateu nelas umas duas vezes para tirar um pouco da sujeira e do pó acumulados e abriu a porta do quarto. Quando saiu, se deparou com um longo corredor a frente e um outro da direita para a esquerda. Quando viu a enfermeira retornar pelo corredor da frente, não pensou duas vezes para tomar a esquerda. Haviam várias pessoas sentadas em cadeiras de estofado preto esperando por atendimento, alguns até dormiam ali, mães amamentavam e crianças choravam, tudo parecia muito novo para ele. Ainda cambaleava um pouco e um ou dois enfermeiros perguntaram se ele não precisaria de um copo d'água, à todas as tentativas de ajuda-lo ele respondeu com "não preciso de ajuda". Vez ou outra passava a mão fria nos fios secos e longos do cabelo, sem saber para onde seguir. Até que resolveu perguntar para um médico e depois, já com o caminho formado em mente, não foi complicado chegar a sala de espera e encontrar Amanda. Ela estava sentada bem na primeira fileira de poltronas, dormindo. Então ele observou as roupas que não havia notado antes. Usava uma camiseta roxa suada na nuca e no peito, uma saia azul até a metade das canelas e sandálias pretas. Seu cabelo comprido agora estava muito bagunçado e suas olheiras, enormes.

- Amanda, - cutucou o braço da garota – Amanda, temos que ir embora. – Ela respondeu com um gemido. – Acorda, Amanda!

- O que foi? – Ela acordou assustada e demorou um pouco em silêncio tentando reconhece-lo por baixo da barba grisalha e do cabelo bagunçado quase totalmente branco – Meu Deus...o que aconteceu com você? – Sussurrou.

- A gente tem que sair daqui agora, Amanda.

Ela se levantou o mais rápido que pode e eles se dirigiram à saída. Caminharam durante um bom tempo, se distanciando mais e mais do hospital, até que Daniel começou a ter novas dificuldades para respirar. Ele pôs a mão sobre o peito, como que para apertar seu coração e fazê-lo bombear mais rápido, mas como nada resolvia, Amanda o segurou e o ajudou a se sentar. Estavam em uma rua deserta e escura com um único poste aceso sobre eles, que mesmo assim falhava. Existia uma árvore pequena ao lado, uma casa colonial bem em frente e, atrás deles, um estabelecimento qualquer, uma panificadora talvez.

- O que aconteceu com você, Daniel? – Ela disse baixinho.

- Tenho como explicar, - tossiu novamente – mas tem que ouvir o resto da história, sem interrupções, sem perguntas. Tem que ouvir até o fim, está entendendo?

Ela confirmou com um leve balançar da cabeça e ele respirou profundamente, fechou os olhos e ficou em silêncio por poucos segundos. Não sei o que passava por sua mente. Quem sabe ainda se lembrasse de flashes do que acabara de ver enquanto dormia? Quem sabe ainda estivesse tentando se acostumar ao novo corpo e a tudo que acontecera? Quem sabe estivesse com ódio? Talvez só estivesse em silêncio.

Depois de NósWhere stories live. Discover now