Dia 30 de agosto de 1989

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"Seria esse o gosto da morte? ", era o que Daniel Viana pensava enquanto inconsciente. E já não era a primeira vez. "É esse o cheiro da morte? ", quem sabe o cheiro da bebida? "Seria essa a música que tocam quando recebem os seus mortos? ", era o que o doutor pensava enquanto ouvia todo aquele cochicho, aquele barulho. "Como estou cheio de perguntas", foi a conclusão a que chegou depois que tudo parara. Ele não se movia, ele não podia falar, não sentia dor. Apenas se lembrava. Uma branquidão preenchia a sua visão enquanto dormia um sono dos mais pesados.

Sem motivo, toda aquela branquidão começa a mudar, como a luz branca ao tocar um prisma. E tudo mudou. A cor surgia aos montes, embaralhada, para ir se separando aos poucos. Depois das cores, formas apareciam em todo o redor, com rostos, bocas e expressões confusas, além de algumas poucas que ia discernindo. Um toque de movimento as cenas. E, por fim, o som dá emoção às imagens, tímido em meio a névoa. Das mais variadas, bem programadas e reais visões, ao máximo que poderiam. E, aos poucos, passou a ver.

No meio da bebedeira, dos tropeços e dos desmaios, uma chama, e dessa chama a fumaça. Muita fumaça subia da esquina, sirenes de ambulâncias e de viaturas se misturavam dentre os murmúrios e gritos de quem passava por ali. Há muito tempo o terror não assolava aquele bairro pacato. Carros paravam próximos dali e seus condutores saíam para ver de perto o que acontecia, vizinhos gritavam por socorro e os bombeiros estavam atrasados. O clima perfeito para o caos.

Nem mesmo os policiais podiam se aproximar do acidente. As chamas já haviam se alimentado das árvores e podado a alta grama, e agora lambiam a calçada. Alguns minutos de tensão depois, vizinhos corriam para suas casas em busca de baldes d'água que não impediram o perigoso avanço do fogo. E o calor continuava a subir. A casa já estava encoberta, restando apenas parte do telhado que lutava pela sobrevivência, apesar de qualquer ação agora ser tardia. Já não se podia salvar quem quer que estivesse ali e por isso amigos íntimos choravam.

No horizonte, via-se um homem com uma garrafa de uma bebida qualquer na mão, a qual deixou cair logo que seus olhos atingiram a silhueta negra do imóvel. Ele correu o máximo que pôde em direção à tragédia, mesmo que mancando, para que logo que se aproximasse da grama quente fosse puxado e fortemente segurado pelos policiais. Gritava, chutava e tentava se afastar das mãos que o prendiam, mas no fundo sabia que nada mais poderia fazer. Por um momento ele rezou, por um curto período, não maior do que poucos segundos, acreditou em Deus, o que muitos fazem durante o desespero, mas nada poderia ajudá-lo. Nenhum Nobel, nenhuma máquina do tempo, nenhum diploma, trariam de volta o que ele perdera ali. Não poderia voltar.

Depois de NósWhere stories live. Discover now