Dia 25 de dezembro de 1962

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Era Natal. De início, as pequenas luzes que rodeavam as casas incomodavam em meio à escuridão da noite, mas foi se acostumando. Reparou que os pisca-piscas não se encontravam apenas nos imóveis, mas também em grandes árvores, ainda comuns ali, naquela época. Como em uma sessão de cinema, a câmera caminhou pela rua, que, apesar de parecer deserta, estava repleta de casas cheias e bares movimentados. Dava para se ver em uma das janelas uma criança colocando a estrela no topo da árvore, outras apressadas abrindo seus presentes e brincando com os pais, tudo terminando em gargalhadas. Num estabelecimento qualquer, tocava Frank Sinatra no rádio e as pessoas se abraçavam, desejando um feliz Natal umas às outras depois de entregarem presentes. Mais à frente, Fábio, um dos seus primos mais velhos, trocava carícias com sua namorada de baixo de um guarda-chuva, por que aquela era uma noite chuvosa. A mais chuvosa de que Daniel se lembrava.

Ao fim da rua, num beco sem saída, uma casa de dois andares, porém apertada. Não haviam pisca-piscas nas portas ou nas janelas, nem mesmo na árvore à frente, ninguém abria presentes, ninguém corria pela sala. Era diferente das outras, mas ainda assim cheia. As crianças iam ansiosas até a cozinha com o seu prato na mão esperando por mais um pedaço do belo Panetone caseiro da Dona Dirce. "Cuidado, crianças, esse saiu do forno agora! ", mas logo se lambuzavam com a calda de chocolate quente que recheava toda a massa. Na sala, a TV usada, que haviam comprado uma semana antes, transmitia Godzilla, um dentre os vários que foram lançados mais tarde, e a tia Bel, o tio Ben e seus filhos assistiam, mas tinham que mexer na antena a cada berro que dava o protagonista, já que o sinal ali não era bom. E o tio Ben xingava a televisão cada vez que se levantava. "Ah, lá! De novo Dirce! ", e um palavrão. "Benjamim, se não calar essa boca a sua língua vai ser o recheio para o próximo bolo! ", respondia Fátima, a vovó. Até Jimmy, o cachorro, latia lá fora. Mas Daniel não estava.

Num dos quartos, o mais miúdo, no andar superior, a chuva batia mais forte na janela e o barulho era ensurdecedor. A cama estava desarrumada, o guarda-roupas carcomido pelos cupins, deixando um rastro de pó no chão, e mosquitos zanzavam na lâmpada fraca no teto do cômodo. Por fim uma cadeira, e, em pé na cadeira, um garoto. Daniel abria a janela, sentia as gotas banharem o seu pijama e ria de tudo aquilo, se sentia livre para voar, seus cabelos balançavam molhados e seus pequenos cílios carregavam rastros da chuva. Nisso, o chão de azulejos enchia-se de poças e água respingava na cama e no guarda-roupas velho. Dona Dirce entrou no quarto com um tabuleiro coberto por um pano.

- Meu Deus do céu, Daniel! – Ele fechou bem rápido a janela – O que queria fazer?

- Batman não tem medo de nada, mamãe! – Pulou na cama.

- Sai já daí menino! – Pegou ele pelos braços – Não basta ter molhado o pijama? – Ele abaixou os olhos – Perdão, filho... – secou o suor da testa - ...as coisas estão ficando complicadas, sabe? Mas, eu trouxe um tabuleiro inteirinho para você, o que acha disso?

- E eu posso comer tudo?

- Se puder guardar um pouco para o seu pai eu vou ficar muito feliz.

- Posso comer tudo?

- Pode, filho. – Segurou ele pelo pulso antes que saltasse sobre o bolo – Tenho uma outra coisa para você.

- E o bolo?

- Pode comer depois. – Riu. – Troca logo essa roupa e vem.

E assim ele fez. Saíram do quarto e caminharam por um corredor que não via há muito tempo. O teto era baixo, o lugar estava pouco iluminado e estreito, uma escada em espiral descia logo ao lado, a tinta branca das paredes já desbotava e descascava e, mais à frente, ficava o quarto de seus pais, mas subiram para o sótão e depois fecharam a escotilha. A mãe acendeu uma vela que levava consigo em um dos bolsos e saíram daquele breu completo. Um rato passou bem perto dos seus pés e, depois de desaparecer, ainda podia-se ouvir suas patas arranharem as paredes e seus guinchos preencherem o silêncio. Dirce abriu uma grande caixa de ferramentas.

- Já veio aqui antes? – Ele discordou balançando a cabeça.

De dentro da caixa ela tirou várias rodas de rolimã de vários tamanhos, cobertas pela poeira, mas o menino ainda não sabia do que se tratava. Tinha sete anos, nada temia e nunca vira uma roda daquele tipo.

- Aqui é escuro, hein? – Esfregou os braços, com frio.

- Não precisa ter medo, filho.

- Bobagem, Batman não tem medo de nada.

- Eu tinha me esquecido. – Voltou-se para as rodas – Sabe o que são? – Mais uma vez ele balançou a cabeça – Essas são rodas de rolimã. – Colocou-as em um saco plástico e as entregou. – E o seu presente de Natal.

- E para o que se usa?

- Para o que você quiser.

- Posso fazer um carro com elas? Como aqueles da TV, sabe?

- Pode.

- Posso fazer uma coleira para o Jimmy?

- O que quiser.

- Uma nave igual àquela do Star Trek?

- O que você quiser!

- O que eu quiser?

- Isso aí! – Riu. – E para isso você pode usar aquelas tábuas também, os martelos e os pregos. – Apontou para cada um com a vela.

- Eu te amo mamãe! – A abraçou.

- Eu também te amo, Dan. – Cochichou no seu ouvido.

E as visões se foram.

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