Era Natal. De início, as pequenas luzes que rodeavam as casas incomodavam em meio à escuridão da noite, mas foi se acostumando. Reparou que os pisca-piscas não se encontravam apenas nos imóveis, mas também em grandes árvores, ainda comuns ali, naquela época. Como em uma sessão de cinema, a câmera caminhou pela rua, que, apesar de parecer deserta, estava repleta de casas cheias e bares movimentados. Dava para se ver em uma das janelas uma criança colocando a estrela no topo da árvore, outras apressadas abrindo seus presentes e brincando com os pais, tudo terminando em gargalhadas. Num estabelecimento qualquer, tocava Frank Sinatra no rádio e as pessoas se abraçavam, desejando um feliz Natal umas às outras depois de entregarem presentes. Mais à frente, Fábio, um dos seus primos mais velhos, trocava carícias com sua namorada de baixo de um guarda-chuva, por que aquela era uma noite chuvosa. A mais chuvosa de que Daniel se lembrava.
Ao fim da rua, num beco sem saída, uma casa de dois andares, porém apertada. Não haviam pisca-piscas nas portas ou nas janelas, nem mesmo na árvore à frente, ninguém abria presentes, ninguém corria pela sala. Era diferente das outras, mas ainda assim cheia. As crianças iam ansiosas até a cozinha com o seu prato na mão esperando por mais um pedaço do belo Panetone caseiro da Dona Dirce. "Cuidado, crianças, esse saiu do forno agora! ", mas logo se lambuzavam com a calda de chocolate quente que recheava toda a massa. Na sala, a TV usada, que haviam comprado uma semana antes, transmitia Godzilla, um dentre os vários que foram lançados mais tarde, e a tia Bel, o tio Ben e seus filhos assistiam, mas tinham que mexer na antena a cada berro que dava o protagonista, já que o sinal ali não era bom. E o tio Ben xingava a televisão cada vez que se levantava. "Ah, lá! De novo Dirce! ", e um palavrão. "Benjamim, se não calar essa boca a sua língua vai ser o recheio para o próximo bolo! ", respondia Fátima, a vovó. Até Jimmy, o cachorro, latia lá fora. Mas Daniel não estava.
Num dos quartos, o mais miúdo, no andar superior, a chuva batia mais forte na janela e o barulho era ensurdecedor. A cama estava desarrumada, o guarda-roupas carcomido pelos cupins, deixando um rastro de pó no chão, e mosquitos zanzavam na lâmpada fraca no teto do cômodo. Por fim uma cadeira, e, em pé na cadeira, um garoto. Daniel abria a janela, sentia as gotas banharem o seu pijama e ria de tudo aquilo, se sentia livre para voar, seus cabelos balançavam molhados e seus pequenos cílios carregavam rastros da chuva. Nisso, o chão de azulejos enchia-se de poças e água respingava na cama e no guarda-roupas velho. Dona Dirce entrou no quarto com um tabuleiro coberto por um pano.
- Meu Deus do céu, Daniel! – Ele fechou bem rápido a janela – O que queria fazer?
- Batman não tem medo de nada, mamãe! – Pulou na cama.
- Sai já daí menino! – Pegou ele pelos braços – Não basta ter molhado o pijama? – Ele abaixou os olhos – Perdão, filho... – secou o suor da testa - ...as coisas estão ficando complicadas, sabe? Mas, eu trouxe um tabuleiro inteirinho para você, o que acha disso?
- E eu posso comer tudo?
- Se puder guardar um pouco para o seu pai eu vou ficar muito feliz.
- Posso comer tudo?
- Pode, filho. – Segurou ele pelo pulso antes que saltasse sobre o bolo – Tenho uma outra coisa para você.
- E o bolo?
- Pode comer depois. – Riu. – Troca logo essa roupa e vem.
E assim ele fez. Saíram do quarto e caminharam por um corredor que não via há muito tempo. O teto era baixo, o lugar estava pouco iluminado e estreito, uma escada em espiral descia logo ao lado, a tinta branca das paredes já desbotava e descascava e, mais à frente, ficava o quarto de seus pais, mas subiram para o sótão e depois fecharam a escotilha. A mãe acendeu uma vela que levava consigo em um dos bolsos e saíram daquele breu completo. Um rato passou bem perto dos seus pés e, depois de desaparecer, ainda podia-se ouvir suas patas arranharem as paredes e seus guinchos preencherem o silêncio. Dirce abriu uma grande caixa de ferramentas.
- Já veio aqui antes? – Ele discordou balançando a cabeça.
De dentro da caixa ela tirou várias rodas de rolimã de vários tamanhos, cobertas pela poeira, mas o menino ainda não sabia do que se tratava. Tinha sete anos, nada temia e nunca vira uma roda daquele tipo.
- Aqui é escuro, hein? – Esfregou os braços, com frio.
- Não precisa ter medo, filho.
- Bobagem, Batman não tem medo de nada.
- Eu tinha me esquecido. – Voltou-se para as rodas – Sabe o que são? – Mais uma vez ele balançou a cabeça – Essas são rodas de rolimã. – Colocou-as em um saco plástico e as entregou. – E o seu presente de Natal.
- E para o que se usa?
- Para o que você quiser.
- Posso fazer um carro com elas? Como aqueles da TV, sabe?
- Pode.
- Posso fazer uma coleira para o Jimmy?
- O que quiser.
- Uma nave igual àquela do Star Trek?
- O que você quiser!
- O que eu quiser?
- Isso aí! – Riu. – E para isso você pode usar aquelas tábuas também, os martelos e os pregos. – Apontou para cada um com a vela.
- Eu te amo mamãe! – A abraçou.
- Eu também te amo, Dan. – Cochichou no seu ouvido.
E as visões se foram.
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Depois de Nós
Science FictionUm grupo de quatro pessoas volta no tempo de 2005 para 1989 e, enquanto desvendam uma série de mistérios, tentam finalmente fazer as pazes com os seus passados.