Dia 19 de outubro de 1987

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Muito barulho vinha de algum lugar que ainda não se podia ver. Barulhos de carros, assobios de pássaros, ruídos de máquinas, o som do toque às folhas de um livro antigo, o giz esfarelando no quadro negro, um som que Daniel não esqueceria facilmente. Por fim, o som de uma porta de madeira pesada sendo aberta, e aí as coisas se tornaram mais claras, como sair de uma caixa escura depois de muito tempo.

-...quase como uma visão! – Daniel – Reitor...tem que confiar em mim!

- Eu confio, Daniel, eu confio.... – Se sentou no seu cadeirão e juntou as mãos sobre a mesa. Não pareceu muito firme quanto ao que disse. – Mas não nesse projeto.

Na sala de diretoria da universidade existia uma janela de onde se via prédios onde se davam as aulas, alunos saindo com suas mochilas e livros, e carros passando na avenida logo à frente. Dentro da sala, as paredes eram pintadas de branco, uma foto com toda a equipe de professores estava emoldurada ao lado de uma estante, cheia de livros, enciclopédias, dicionários e todo tipo de pequenas esculturas e objetos. Sobre a mesa, um álbum de fotos fechado, uma garrafa de água pela metade, um porta lápis, pó de borracha e a borracha. Na cadeira, o Reitor, com um semblante não tão bom.

- Mas tem tudo para dar certo, só preciso de uma equipe, do investimento e do laboratório. – Enquanto falava, gesticulava de todas as maneiras possíveis. – É viável!

- Para mim não. – Se levantou e apoiou a mão direita no ombro do professor. – Escuta, sabe que estamos passando por momentos difíceis, não temos o dinheiro necessário e outra, você não está em condições.

- Não estou em condições? – Se afastou – Do que você está falando?

- Está obcecado, Daniel. – Voltou a se sentar – Não está em condições.

- A obsessão é necessária, sabe disso!

- Mais criatividade e determinação, menos obsessão.

- Do que você tá falando, Roberto?

- Sua vontade não está acima de todo o resto! – Silêncio. Respirou fundo – Tenho um pessoal para coordenar aqui, - apontou para a mesa – não posso abrir mão disso.

Há alguns meses, Daniel insistia na iniciação de um projeto relacionado ao transporte de informações através do espaço. Acreditava que as ondas poderiam ser aceleradas, à tal ponto, que ultrapassassem todas as barreiras. Queria acessar centenas de milhares de anos-luz para além da Terra, transmitir sinais no espaço à possíveis seres extraterrestres e também receber sinais, poderia agir até como um rastreador, ou, quem sabe, tornar possível o estabelecimento de conexões diretas entre passado e futuro. Mas Roberto não pensava assim. Era um homem da administração, sua mente se encontrava sempre no futuro e, segundo ele, a universidade estava a poucos passos da falência, e não via o porquê da realização de um projeto tão arriscado àquela altura do campeonato. Não agia por impulsos.

- Não vejo utilidade no seu projeto, essa é a verdade.

- O quê?

- Não sei agir por impulsos, professor, já disse, é um projeto arriscado e não temos verba suficiente...

- Projeto arriscado? – Gritou – Eu tenho todas as anotações, os cálculos, tudo, tudo está pronto, só preciso...

- Só precisa da grana que eu não tenho. – Respirou fundo mais uma vez. Se levantou e começou a procurar algo em meio aos livros da estante. – Estava aqui em algum lugar...ah, aqui está.

Ele retirou um álbum da estante, onde na capa estava escrito "1980-1990", abriu em uma página bem no início do livro e apontou para vários artigos, todos sobre Daniel. "Mais novo PhD em física do estado se forma na Federal", era uma das manchetes, "Federal é a maior investidora em pesquisas no Estado", "UF recebe cheque de 10 milhões para o investimento em pesquisas", "O PhD em física, Daniel Viana, fala sobre como é coordenar as pesquisas" e as manchetes continuavam, assim como as várias fotos.

- Está vendo, Daniel? – Continuava a virar as folhas – Vê o ano em que foram publicadas? – Fechou o álbum – Isso foi em 81, a mais recente é de 83. Você não produziu mais nada, você nem sequer se empenha nas aulas, Daniel...

- A gente pode fazer de novo e eu...eu posso continuar dando as aulas como dava antes e....

- Eu vou tentar explicar melhor. – Se aproximou – Se temos uma fábrica, mas as engrenagens não funcionam, a fábrica para de produzir. Se temos um Estado, mas não temos trabalhadores, o Estado quebra! – Aumentou o tom – Se temos uma Universidade, mas não temos os professores certos, param de estudar nela! – Olhou nos olhos do professor – Você está quebrado, Daniel.

O doutor olhou mais uma vez nos olhos do Reitor sem entender ao certo o que se passava ali, antes de sair da sala sem fechar a porta. Continuou andando até a avenida e não parou até chegar à porta de um bar, entrou ali e se embebedou. Isso durou mais três longos anos.

E a visão se foi.

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