Bravo, bravíssimo

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Na velha Escola Marvin, eu era o pavão da turma do primeiro ano: cabeludo, barbudo, um verdadeiro riponga dos findos anos setenta. Curtia muito rock'n'roll e MPB. Era também comunista de carteirinha, inscrito e tudo nas fileiras do PCdoB.
Eu tinha uma professora de literatura e português, dona Neci, que me chamava de poeta e afirmava categoricamente que eu ainda ia longe.
Com dona Neci, conheci Fernando Pessoa, Florbela Espanca, além de Byron e Baudelaire.
Eu tinha também um professor de inglês chamado Silveira. Gordo, alto, sempre bem vestido, ele era um gay assumido e costumava brincar com os rapazes da turma, especialmente meu amigo Sandro, a quem perguntava:
- Where's your rule?*
Todos riam da pronúncia carregada dele na palavra "rule". Pelo fato de eu ser um excelente aluno de inglês, ele me deu um presente empacotado num papel cor de rosa com um enorme laço igualmente cor de rosa. Quando abri, tinham os dois volumes do curso Modern American English, os quais eram usados nos dois primeiros anos do colegial, que à época se chamava segundo grau. Eu, claro, fiquei muito feliz porque minha mãe não tinha dinheiro para comprar tais livros.
E assim seguia minha vida no primeiro ano da Escola Marvin.
Eu tinha por amigos quase a escola inteira, mas havia uma menina que eu adorava como a um ídolo. Ela se chamava Ana Clécia e estudava viola clássica, no Sesi da Barra do Ceará. Eu já conhecia música clássica e ela, às vezes, levava o instrumento para a escola e nos brindava com um concerto e, nesses concertos, não faltavam as peças de Mozart e Vivaldi.
Clecinha, como a chamavámos, era tímida e, por qualquer coisa, ficava vermelha e com falta de ar.
Um dia, a professora Neci conversando comigo comentou:
- Sabe, poeta, eu acho tão estranha essa falta de ar dessa menina.
Perguntei à professora o que ela achava que devia ser. Dona Neci me disse que suspeitava que fosse um problema cardíaco, ou no linguagem rebuscado dela uma "cardiopatia".
Para quem não conhece, a Escola Marvin fica num alto e quem não ia de ônibus, como eu e Clecinha, tínhamos que subir a ladeira a pé. Isso se repetia na ida e na volta, pois pegávamos a Theberge para tomar o ônibus na Av. Francisco Sá. A Clecinha anda mais porque morava na Av. Olavo Bilac.
E aconteceu que a canseira de Clecinha se tornou mais grave. Ela, às vezes, passava a aula toda sentada e nem para o recreio ela ia tamanho seu cansaço e sua falta de ar.
A professora Neci começou, então, a levar a jovem violonista até bem próximo de sua residência.
No mês de abril daquele ano de 1980, fomos todos os amigos mais íntimos assistir aos exames de nossa amiga Ana Clécia. Ela tirou nota máxima de todos os examinadores, a maioria professores do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno. Ao final do exame, Clecinha foi levada às pressas para o hospital para tomar aerossol, pois sua falta de ar estava muito forte.
Passou-se uma semana e numa de nossas inúmeras conversas sobre música, Clecinha me confessou:
- Vou parar com meus estudos de viola...
Fiz cara de espantado e quis saber porquê. Ela me disse que a posição do instrumento a deixava sempre muito cansada e com mais falta de ar. Afirmou também que só ia parar depois do grande concerto que estava marcado. Este concerto apresentaria os selecionados da Camerata do Sesi.
Numa sexta-feira de maio, vesti minha melhor roupa: uma calça social preta surrada e uma camisa cinza de mangas longas. Calcei os sapatos pretos, mas tão cinzentos de velhos. Minha mãe penteou meus longos cabelos e rumei para o auditório do Sesi.
Sentia-me muito importante ao lado de quase todos os professores de música do Sesi e de várias escolas, inclusive do Marvin.
Às sete horas da noite, em ponto, o Maestro de nome Vasquen começou a reger a Camerata. Estava tão maravilhado que não me dei conta de quão rápido passou aquela uma hora e meia de música.
Ao fim da última peça, todos aplaudiram de pé e eu gritei:
- Bravo, gravíssimo!!!
Terminado o concerto fomos dar um abraço em Clecinha, mas ela estava ofegante e não consiga falar direito. Suas mãos estavam geladas. Os pais dela a levaram às pressas para o pronto socorro. Eu voltei a pé para casa, pois fui para o concerto com apenas a passagem de ida.
Cheguei em casa com todos aqueles acordes na cabeça e demorei muito para pegar no sono. Quando dormi, sonhei que Clecinha estava tocando no gramado do ginásio do Sesi e ela usava uma túnica branca que revoava com uma brisa leve e havia um cheiro de alfazema e alecrim por todo o ar.
Na segunda-feira, ao chegarmos para à aula, encontramos um aviso escrito numa cartolina azul e colado no portão da escola. Dizia assim:
"A Coordenação da Escola Marvin informa que hoje não haverá aula em luto pelo falecimento da aluna Ana Clécia Lima. Retornaremos às atividades letivas amanhã.
A Direção."
Clecinha fora encontrada morta na madrugada daquela segunda-feira. Estava serena, abraçada a sua viola clássica. Clécia tivera um infarto fulminante.

Fortaleza, 03 de março de 2020.

*Tradução do inglês: Where's your rule?: Onde esta tua régua?

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