A gente sentava no muro do Hilza Diogo: eu, Zé Agno e mais uma reca de adolescentes. A gente fica cantando No Woman No Cry e quem passasse em frente ao colégio era alvo de piadinha e as meninas de cantadas baratas.
Eu namorava com uma loura linda, mas que também era muito louca e ciumenta. Eu estudava à noite e como ela era burguezinha, estudava pela manhã no Colégio Sete de Setembro e à tarde fazia inglês no IBEU. Ela soube da minha gaiatice no muro do colégio e me fez uma advertência:
- No dia que eu tiver de ovo virado, eu vou de bicicleta e te derrubo do muro a pedrada. Derrubo tu e aquele negro gaiato do Zé Agno.
A bem da verdade, ela detestava meu amigo e a recíproca era verdadeira. Zé Agno a chamava de "loura azeda" e ela o chamava de "Chita", em referência à chimpanzé amiga de Tarzan.
Quase todos os dias, quando a gente se sentava no muro do Hilza Diogo para fumar um velho Arizona(*), passava um cara de chapéu de cowboy, pano passado, camisa de xadrez de manga longa e um cinturão de fivela enorme.
Ela passava numa bicicleta Monark cheia de pequenas lâmpadas que, a época, a gente chama de "foquite".
Quando o exótico ciclista passava, Zé Agno cantava:"É Natal, é Natal,
Já chegou Natal"O ciclista olhava Zé Agno com cara se poucos amigos e seguia seu caminho. Meu amigo de sala de aula continuava:
"Jingle bell, jingle bell,
Já chegou Natal."E o muro ficou famoso. Era uma verdadeira briga para alguém sentar no lado esquerdo porque quando a gente pulava pra dentro caía praticamente no portão de entrada.
A gente paquerava com as meninas que passavam na rua, dava cantada nas alunas que chegavam e cantava os sucessos musicais da época, inclusive dos cantores norte-americanos num inglês macarrônico terrível. Mas o forte mesmo era No Woman No Cry, na versão de Gilberto Gil.
Numa noite, antes de ir à escola, passei na casa de minha namorada para dar uns beijinhos e conversar como sempre fazia. Encontrei-a com a cara fechada e, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela disparou:
- Tu ainda continua baldeando no muro, né? Tu num tem jeito não.
Fechei a cara e fui ao Hilza Diogo. Quando cheguei, Zé Agno já estava sentado no muron e foi ligo me oferecendo o velho Arizona.
Subi no muro, acendi o cigarro no cigarro de Zé Agno e começamos a fulerar. Passou um grupo de meninas e haja cantada pras meninas. Zé Agno me cutucou e falou:
- Lá vem o Cowboy com sua árvore de Natal.
Ele se referia ao ciclista de bicicleta iluminada se "foquites".
- Deixa o cara, macho, observou um colega nosso.
Entrou uma menina que fazia a oitava série e eu disparei:
- Coisa linda, meu Deus. Minha mãe quer ser tua sogra, sabia?
Eu tinha terminado de pronunciar a palavra "sogra" quando senti uma pancada na testa e, perdendo o controle, cai de costa do muro pra dentro da Escola. Houve outra pancada e ouvi a voz de Zé Agno que caira do muro para fora.
Ainda zonzo e com o galo na testa, sai pelo portão e me deparei com o ciclista dando o segundo tapa no pé do ouvido de Zé Agno.
O ciclista, depois dos dois tapas, falou para meu amigo:
- Você respeite cidadão, seu moleque.
Deu as costas, subiu na sua bicicleta e saiu tranquilo.
No outro lado da rua, minha namorada, com uma baladeira na mão, ria de mim e Zé Agno.
Meu amigo olhou para minha menina e, também com um galo na testa, berrou:
- Loura azeda!!!
Ela saiu faceira em sua bicicleta vermelha e todos os nossos colegas riam das duas pedradas que levamos na testa, além claro dos tabefes que Agno levou.
A partir daquele dia, e por muito tempo, fui chamado de "sibite baleado" e Zé Agno nunca mais nem olhou para o ciclista exótico com sua bicicleta cheia de luzes que parecia, deveras, a uma árvore de Natal.
(*) Arizona era uma marca de cigarro popular, no Brasil, nos anos 70/80.
Fortaleza, 15 de março de 2020.