Havia, perto da minha casa, um terreno baldio com várias mangueiras enormes. Era o famoso mangueiral.
Lá era nosso mundo fantástico, porém proibido porque segundo nossos pais, ali só "dava gente ruim", mas de uma forma ou doutra, a gente fugia e se entovaca pelas veredas a busca de camaleões, borboletas e, a tardinha, a gente buscava os vaga-lumes para pô-los dentro de um vídeo seco de "Água de Colônia" para nós servir de lanterna quando a gente deita e as luzes das lamparinas eram apagadas.
Todas as mães da rua pareciam comunicar-se telepaticamente quando pela manhã ou à tarde algum dos filhos sumia. E logo lá vinham elas armadas de palmatórias, chinelas, cipós de marmeleiro e ai daquele que corresse, a peia seria maior.
Eu, por exemplo, já conhecia o mantra de minha mãe: "Se correr é pior..."
Mas, apesar de todos os cuidados, os únicos perigos que nos aguardava, no terreno baldio, eram as urtigas, os enxames de abelhas ou a má sorte de pisar nalgum caco de vidro.
Mas o mangueiral só nos era totalmente irresistível quando era tempo de manga. Naquele terreno enorme havia todos os tipos de manga: manga rosa, espada, tamaracá, até manga coité tinha.
E havia as famosas disputas à pedrada, com baladeira, dos meninos da minha rua com os das ruas vizinhas. Às vezes, a gente levava vantagem, doutra chegava em casa com um "calombo" nas costas, um "beiço" partido ou um galo na testa.
Assim a gente esperava a época das mangas e, à tarde, depois das quatro, a gente sempre inventava de ir fazer um dever com um amigo e saia uma caravaba para o mangueiral.
Cada um levava o seu saco para colocar as mangas que conseguisse pegar. E quando chegasse em casa a desculpa era que tinha ganho da mãe de fulano ou beltrano, que tinha trazido do interior.
Naquele dia, fomos uns dez ao mangueiral. Fizemos nossa incursão e descobrimos um pé de manga rosa que estava repleto delas. Os meninos foram logo subindo e eu, feito um calango desengonçado, fui atrás.
E lá fomos pulando de galho em galho e botando no saco a manga que cada um conseguisse pegar.
No meu saco eu já tinha umas dez e quando notei eu estava no topo e a mangueira era a mais alta daquele terreno baldio.
Olhei para baixo e senti uma tontura. A ganância pelas mangas fora tanta que eu fui parar onde nunca tinha ido antes.
- Eu vou descer, negada, tá muito alto.
Chico Zé, o chefão e o mais velho da turma concordou:
- Desci bem direitinho, viu, macho, teu saco tá cheio de manga. Quando for trocar de galho, vê se o galho é forte e aguenta teu peso.
Alguém que estava perto de mim começou a frescar comigo:
- Isso é um mané mago, qualquer 'gai' aguenta.
E lá me fui seguindo os conselhos do mestre Chico Zé. Pisei no primeiro galho descendo e deu tudo certo. Segundo e terceiro também, mas quando fui para o quarto, alguém disse uma gracinha e eu, sempre prestar a atenção, pisei num galho podre e num piscar de olhos eu vi tudo escurecer.
Acordei com a voz do Rogério dizendo:
- Acho que o 'fi' da dona Augusta morreu...
Uns gritavam, outros choravam e eu, abrindo os olhos, dei de cara com Chico Zé:
- Morreu porra nenhuma!!! Eca, e eu ainda fiz respiração boca a boca nesse mané mago. Levanta, 'fulerage'!!!
Chico Zé me levantou e ordenou:
- Fala alguma coisa, porra, fala.
Parecia que eu tinha engolido uma estaca: eu tava todo duro. Passei a mão no meu saco de manga, que estava a tiracolo, e disse bem baixinho, pois meu peito doia bastante:
- Minhas mangas estão todas aqui.
Levei um cascudo do Chico Zé e uns "sabacus" do resto que até tinha chorado pensando que eu tinha morrido.
Resolvemos voltar, pois já estava escurecendo e eu estava andando parecia um robô. Chico Zé, então, determinou:
- Nós 'vai' tudin levar o 'fi' da Dona Augusta. A gente diz que ele levou uma queda brincando de pega-pega e nós 'diz' que deu essas mangas pra ele.
Quase chegando lá em casa, Chico Zé parou e disse:
- Nao, negada, a gente vai falar a verdade, nós 'vai' apanhar mermo.
E assim se fez. Todos foram me levar em casa e mamãe, com uma cigarro no canto da boca, ouviu toda a história.
Quando os meninos foram embora, ela preparou um copo de leite quente com mastruço e disse:
- Toma todinho, sem fazer careta.
Eu achei um gosto horrível e disse:
- Mas amarga, mãe, amarga demais...
Mamãe pegou o saco de manga, lavou uma na pia, pegou uma faca e a cortou. Comeu uma pedaço e olhando pra mim disse:
- Amarga vai ser a surra que vou lhe dar depois que você ficar bom. Agora vai tomar banho, tá mais sujo do que par de chiqueiro.
Entrei no banheiro e ela delicadamente me deu um banho e lavou com cuidado minhas costas e minhas costelas. Depois me enxugou, me vestiu um calção limpo e pegou uma pomada que ardia e fez uma mensagem no meu peito e nas costas.
- Agora vá se deitar. Se sentir dor me chame e na próxima cara feia que você fizer vai levar duas surras: uma pela cara feia e outra pela 'mulecage' de hoje.
Não precisa dizer que na rua inteira houve uma mão de peia generalizada. E o pai de Chico Zé dizia:
- Não vai chorar, fi duma égua?
E a gente ouvia uma chibatada e mais outra e mais outra e Chico Zé nem gemia.
Chico Zé apanhou até o braço do pai dele cansar, mas não soltou um "ai".
No outro dia, ele tava todo roxo de peia e quando fomos prestar nossa solidariedade para ele, ele sentado no muro na casa do seu Manel, acendeu um cigarro (ele tinha quatorze anos) e olhando para as nossas caras disse:
- Vão 'tudin' se fuder, bando de 'carai'. Quem tem pena é galinha.
Ele olhou para mim e me perguntou:
- Doeu muito pra dormir, mané mago?
Balancei a cabeça afirmativamente e ele me colocou no varão da bicicleta dele e disse:
- Pois nós vai voar agora, mané mago!!!
E saímos voados, bem umas dez bicicletas rumo à praia da Barra do Ceará. E nossa liberdade era tanta que pouco importava se a gente fosse ou não apanhar na volta.
Fortaleza, 06 de abril de 2020.