Os Protegidos de Thor

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Sempre gostei de temporal. Nunca gostei de chuvinha fina ou moderada. Chuva pra mim tinha, e ainda tem, que ter temporal com rajadas de vento e muito, mais muito relâmpago e trovão.

Fico fascinado quando chove e vem aquelas pancadas de trovões e raios iluminam os céus. Se eu pudesse, eu ficava num posto de observação vendo os raios caírem e os trovões estrondarem feito bombas no cinza de um céu de temporal.

Infelizmente quando chovia e toda a garotada ia tomar banho de chuva, eu ficava confinado dentro de casa porque eu tinha "otite" e quando pegava muita água na cabeça, em geral, a água descia para o ouvido e eu começava a sentir dor. Às vezes, inflamava tanto que eu tinha febre e tinha que ser levado, às pressas para o hospital.

Mas como toda criança, eu era desobediente e fugia quando a chuva começava a cair para o famoso banho de chuva nas biqueiras.

Porém, meu prazer não era tomar banho em chuva fininha não. Meu fascínio era o temporal com relâmpagos e trovões. Mas qual o motivo desse fascínio?

Como toda criança, eu tinha minhas bizarrices e uma delas era ser fulminado por um raio.

Eu sonhava sempre que chovia forte e que eu estava tomando banho e lá se vinha um raio e me acertava em cheio na cabeça. Mas esse desejo era meu segredo mais secreto.

Acontece que todo menino ou menina tem seu melhor amigo, para o qual não há segredos. E meu melhor amigo era o Pereira e, por coincidência, meu desejo de ser atingido por um raio era o mesmo do Pereira.

No colégio, ficavámos lugubremente, eu e Pereira, imaginando o dia em que seríamos acertados por um violento raio. Na nossa vã inocência, poderíamos morrer ou não. Como acreditávamos em Thor, tínhamos certeza que não morreríamos.

Tanto eu quanto Pereira éramos cheios de fantasias. Eu queria me tornar diplomata e ser embaixador do Brasil em todos os países do mundo, por isso sonhava em ser poliglota.

Pereira, por sua vez, tinha um inicialmente desejo do qual não abria mão: queria ser caminhoneiro e percorrer o Brasil de norte a sul.

Mas Pereira era língua solta. Nem todo segredo, exceto os segredos sexuais, eram passíveis de ele os guardar a sete chaves. Do resto, eu era o famoso "bocão". Fazia isso sem maldade, mas por pura inocência.

Uma vez, Pereira estava lá em casa e começou a chover. Era uma chuvinha fraca e minha mãe disse para meu amigo, que estava de bicicleta:

- Meu "fi', num melhor você aproveitar que a chuva tá fraca e ir pra casa não?

Pereira riu e disse:

- Não, tia, vou esperar ficar mais forte porque quero relâmpagos e trovões.

Mamãe franziu a testa e perguntou:

- Diabeisso, menino, quer ser morto por um raio?

Pereira riu e acabou comigo:

- Conta pra ela primo o nosso desejo?

Fingir não ter ouvido nada e continuei escrevendo no meu caderno de português.

Minha mãe, tão suave como a pata de um elefante, me pegou pela orelha e arguiu:

- Que desejo vocês têm 'junto'?

Antes que eu me pronunciasse, Pereira completou a "trairagem":

- A gente sonha ser atingido por um raio, tia, mas não se preocupa não que a gente será protegido por Thor!!!

Mamãe fez cara feia e perguntou:

- Quem diacho é Thor, menino?

Pereira todo mestre em gibi explicou:

- Tia, o Thor é o Deus do Trovão. Ele é filho de Odin. Como a gente é fã dele, ele protege 'nos'.

Enquanto a chuva aumentava, veio o decreto irrevogável de minha mãe:

- O senhor seu Pereira só vai pra casa quando clarear e parar de chover e este doido aqui (apontando pra mim) está proibido de ler essa porra de Thor.

Olhei com a cara de repúdio para Pereira e meu amigo sempre rindo me confessou ao ouvido:

- Nós 'lê' escondido lá em casa, seu besta.

Mamãe olhou para mim e com seu jeito punitivo dela ordenou:

- Os 'doido' aí que são protegidos pelo tal do Thor peguem aqueles dois 'balde' alí e vão encher a tina do banheiro. Agora!!!

Pegamos os baldes e na chuva fininha puxamos mais de vinte baldes d'água na velha bomba do jardim.

Quando a chuva passou, Pereira montou na sua bicicleta e foi para casa me garantindo que revista do Thor não ia nos faltar.

Quando ele saiu, mamãe comentou:

- Donde já se viu a pessoa querer ser acertada por um raio? O senhor tá proibido de sair na chuva, tá entendo seu doido?

E quando chovia e eu estava em casa a primeira coisa que eu ouvia era:

- Pra dentro, Francisco, agora!!!

Cresci, mas até hoje tenho fascínio por temporal com relâmpagos e trovões. E me lembro que quando saíamos do colégio, eu e Pereira, buscávamos uma árvore porque, segundo lemos, era mais fácil de cair um raio.

Fortaleza, 06 de abril de 2020.

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