À Manuela di Cassia.
Nos anos 80, o Joca já existia. Da pra você ver como ele deve ser um dinossauro e acho tão engraçado quando escuto as novinhas dizendo:
- Bicha, ontem no Joca tava babado!!!
Chego mesmo às gargalhadas quando as ouço, mas o certo é que foi no Joca que todas se jogaram na vida e que, na época, em meio à repressão e preconceito, era para lá que ocorriam todas aquelas que queriam se montar.
Numa noite de sábado, eu estava no Joca ajudando as bichas de montarem. Como eu não entendia porra nenhuma de maquiagem, eu fazia barreira humana para que elas trocassem de roupa. Já vestidas, começavam os acertos das picumãs(*) e da maquiagem.
Um bando de travestis encabeçados por Divine Skyline, uma morena de quase dois metros de altura e algumas aplicações de silicone, saia do Joca quando em frente à barraca parou um kadett verde.
Divine Skyline estava vestida com um vestido longo de paêtés azulados brilhantes e calçava um salto 18, o que a deixava uma gigante em porte e beleza.
As outras travestis estavam todas lindas e algumas terminavam de retocar o batom, o que era o caso de Divine.
Do kadett verde que havia estacionado bem em frente às travestis, saiu um pitboy bombado de blusa branca, estilo pólo, e calça jeans cinza igualmente colada. Com ele, desceram mais dois iguais a ele, porém vestidos de preto.
Divine, enquanto pegava o delineador na bolsinha, lançou um olhar para o carinha, que se inchou e gritou:
- Perdeu alguém parecido comigo, oh veado véi?
Divine Skyline lançou-lhe os olhos amendoados de longos cílios e boca carnuda e disse:
- Tá 'loca' a senhora? Venha forte não!!!
O pitboy voou para cima de Divine e deu um soco frontal que só na pegou porque a travesti se esquivou. Nisso, a gente ouviu um berro e um som de um tecido sendo rasgado:
- Chega, mano, o veado me cortou, gritou o carinha que tinha um corte em lateral do pescoço esquerdo até a coxa.
Quando Divine notou que tinha esguinchado sangue em seu vestido, ela enlouqueceu e disse:
- Olha o que esse bofe fez: estragou meu vestido!!! Num venha de garfo não, veado, que hoje é sopa!!! Vai se fuder, veadinho bombado.
Divine partiu para cima do pitboy e desferiu, em média, umas seis navalhadas nos peitos, costas e cara do infeliz. Enquanto isso, as outras travestis desciam a porrada e giletadas nos outros dois rapazes que acompanhavam o pitboy ensanguentado.
O carinha, que estava sob o poder de Divine, conseguiu se por de pé e trêmulo e pingando sangue feito uma ovelha degolada saiu nas carreiras acompanhado dos outros dois.
Divine virou para as bichas e ordenou:
- Monas, vamo detinar o carrinho do bofe!!!
Como havia uma obra de troca das pedras do calçadão, o que não faltavam, claro, eram pedras. Em minutos, o kadett verde se transformara num daqueles maracujás maduros que ficam esquecidos na banca do feirante. Nem o vidro do retrovisor sobrara.
Divine olhou para as amigas e disse:
- Acuenda, mona, que os alibam tão descendo, acuenda, acuenda!!!(**)
Em menos de meia hora não tinha um veado sequer no Joca, só se via um monte de ferro velho do que fora, um dia, um esporte kadett verde.
Fortaleza, 17 de março de 2020.
(*) Picumã gíria gay da época para peruca.
(**) Linguajar gay da época que traduzido fica: desaparece, veado, desaparece que os policiais estão chegando, desaparece, desaparece.