Eu fui criado por uma mãe que não deixava passar nada de errado. Mamãe não admitia palavrão dito por um filho seu e se saísse do banho mal banhado, voltava para tomar outro banho sob sua inspeção. Detalhe: isso aconteceu comigo até quando eu criei barba na cara.
Ela mesma nos alfabetizou em casa pela velha e saudosa Carta de ABC. Depois de alfabetizado, começava nosso suplício: decorar a tabuada de 1 até a tabuada de 10, com as respectivas operações: somar, diminuir, multiplicar e dividir.
Minha orelha ficava uma pimenta, pois cada vez que eu errava, a correção se dava por um puxão de orelhas. Aliás não era um puxão de orelhas, era uma rotação de orelhas em sentido horário. E se chorasse, vinha a velha frase:
- Engula o choro que eu 'num' tô lhe batendo.
E eu engolia o choro.
Acontece que meu pai (na verdade ele era meu pai só no papel), não sabia ler, mas todo dia ele trazia os jornais e a coitada de minha mãe, à noite, sob a luz da lamparina, lia-o para ele.
Um belo dia, eu chegou da escola, tomei banho e fui almoçar. Lá em casa ninguém almoçava ou jantava sem antes tomar um banho. Mamãe dizia:
- 'Num quero fi meu fedendo não'.
Depois de qualquer refeição, vinha a ordem: "escovar os 'dente' pra eu ver".
Naquele dia, eu cheguei, troquei de roupa e quando ia para o banheiro, o jornal do dia anterior estava aberto em cima da mesa. Eu olhei para o jornal e li um anúncio que dizia mais ou menos assim: "sorvete é gelato, gelato é sorvete".
Quando minha mãe ouviu, me pegou pelo braço e mandou eu ler várias outras passagens do jornal. Depois fui tomar banho, almocei e fui fazer os deveres de casa.
À noite quando meu pai chegou, tomou banho, jantou, deitou-se na rede e disse:
- Augustinha, vem ler o jornal pra mim, fia.
Mamãe me pegou pelo braço, me sentou num tamborete e ordenou:
- Leia!!!
Li todas as notícias esportivas e policiais.
Minha mãe, naquela noite, até cantou pra eu dormir e no dia seguinte ganhei um monte de cordel para eu ler pra mamãe e pro meu pai.
E assim fui crescendo, mas dos muitos causos da minha infância, teve um que me marcou pelo resto da vida e me fez passar uns meses sem brincar no meio da rua com a turma.
Foi assim: mamãe sempre me levava na bodega do seu Nemésio para eu ajudá-la a trazer as compras. Nesse dia, ele tinha aberto uma saca de farinha d'água e eu, às escondidas, comecei a comer farinha com açúcar. Eu metia uma mão de farinha e outra de açúcar na boca e ficava remoendo feito um vaca.
Lá pelas tantas, o galalau do seu Nemésio falou assim:
- Dona Augusta, cuidado que seu fi vai se empazinar de tanto comer farinha com açúcar.
O bodegueiro caiu na gargalhada. Mamãe se aproximou e perguntou me puxando a orelha:
- Quê que tu tem na boca, fi duma égua?
Com raiva de seu Nemésio e para dar uma de bichão, eu fiquei calado.
Ela apertou novamente minha orelha e repetiu:
- Quê que tu tem na boca, fi duma égua?
Eu disparei:
- Língua e dente!!!
Foi melhor que eu tivesse ficado calado, pois alí na frente de todo mundo eu levei umas dez chineladas e ainda tomei dez bolos em cada mão, com uma maldita palmatória que ela comprou na feira.
O pior é que durante meses, toda vez que eu passava tinha um safado que repetia às escondidas:
- Língua e dente.
E tinha sempre um gaiato que perguntava:
- Quê que tu tem na boca, fi duma égua?
E lá se vinha a maldita resposta:
- Língua e dente.Fortaleza, 11 de março de 2020.